Monday, January 20, 2014

A Felicidade de Aurora

Aurora, nome infeliz, não era louca, não era linda, nem era das mais brilhantes criaturas, mas acontece que por desdobramento natural das coisas, para não dizer "por muita sorte", Aurora tinha uma vida dessas bastante acertadas. Um marido tão bom, mas tão bom,  que vez ou outra o chamavam de príncipe assim pelas calçadas, como aqueles dos contos de fada mesmo, porque ele era assim dessas perfeições cartunescas, de parar e pensar “eu não mereço isso”, mas Aurora não parava e não pensava essas coisas.

Aurora também tinha dois filhos, e eles eram quase sempre a exatidão de um sonho realizado. E corriam pela casa, e a casa deliciosamente arejada, com as janelas abertas e o jardim de cinema. Os livros lidos na estante eram da mais vasta e elogiada literatura, como os sorrisos dos porta-retratos dos mais sinceros sorrisos já fotografados.

Aurora não tinha, portanto, na medida em que ela mesma não merecia isso tudo, qualquer razão para que numa manhã de domingo, ela acordasse mais cedo, colocasse a primeira roupa que encontrara na frente, e saísse pelo portão de casa assim desprevenida.  Ela não precisava fugir de nada. Não tinha traído, nem mentido para ninguém. Não escondia dívidas nos bancos, nem segredos impronunciáveis. Estava limpa, como o céu estava limpo e azul naquela estrada. Mas ela foi embora.

O ônibus parou em uma cidadezinha angustiada, feia e árida, de um calor desumano. Aurora desceu suada, com o vestido molhado, o rosto vermelho e quente. Era ali que queria viver. E também queria ter outro nome agora, talvez se chamasse Paula, ou Marília. Foi direto para o hotel mais barato, que também era o hotel mais caro, posto que era o único de lá.  E por nunca dizer pelo que buscava, por nunca em anos e anos explicar de onde um dia viera, as pessoas de lá apostavam nos horrores desumanos de seu passado, nas misérias abomináveis das quais Aurora, agora Marília, ou Paula supostamente havia fugido.


Pois Paula construiu uma casinha pequena e injusta, encontrou um marido daqueles bastante reais, e varreu o chão batido e ninou as novas crianças chorosas de tanto calor. Naquela nova casa, a velha Aurora não entrou um único dia. Naquele novo lugar, nos raios do fim do mundo, Paula foi muitas vezes triste, mas era livre para assim o ser, inclusive. Ali, ninguém, absolutamente ninguém, do começo da estrada ao final da ladeira; dos meninos sem nome, às mulheres na janela, ninguém era obrigado a ser feliz.

2 comments:

Bruno Höera said...

Um dos melhores textos que vc já publicou aqui.

Fiquei arrepiado!

Anonymous said...

Obrigado!