Wednesday, June 05, 2013

O Bestiário das Onze Horas


      Vitório Grimaldo era desses homens de colecionar bestas. Algumas já mortas, outras saídas da sua cabeça, mas fazia sempre uns desenhos estranhos e os guardava em grandes cadernos na estante do quarto. Todo dia, às onze horas em ponto, em seu transe diário absurdo, Vitório Grimaldo desenhava sua nova criatura cheia de detalhes e notas para lembrar depois. Eram encontros irremediáveis de homens e feras, plantas e elementos da natureza,  todas tão cheias de personalidade, que ele às vezes acreditava tê-las de fato conhecido em vida, mas fato é que frequentavam apenas seus sonhos mais escuros.

    Com os anos e com as tantas onze-horas da vida, Vitório Grimaldo atingiu uma compilação incalculável de criaturas estranhas, todas catalogadas alfabeticamente; e eram assim como verbetes de uma dimensão paralela, tão vasta quanto sua solidão pudesse supor.

      Em um dia de outono, veio ter com ele uma menina. Carlota era o nome dela. Pelo menos foi isso que ele escreveu no cabeçalho daquele desenho, que ele então eternizou em linhas exatas de caneta preta e esmero.

     Carlota era metade menina, metade dia de chuva. Tão pequena e mirrada, que na maioria das vezes o que se enxergava era apenas uma criança sob a nuvem escura de um dia de temporal. Ela tinha a pele do rosto cinza e gelada, de quem guarda no coração todos os fantasmas e todos os trovões do mundo.  Quem a conhecera, escreveu Grimaldo em nota de rodapé, não se lembrava de ter visto menina tão triste, nem de tê-la ouvido contar qualquer lembrança feliz da vida. Era apenas chuva e apenas raiva (ou a espera da chuva e a espera da raiva), mas raiva de tudo mesmo; de qualquer criatura que um dia notara a sua presença, e raiva de quem por alguma sorte nem tempo teve para notá-la.

    Relevada a sua fúria mais fundamental, o curioso mesmo sobre aquela menina é que quando ela dizia qualquer coisa, a pobrezinha fazia chover. Assim literalmente, sem poder evitar. Era só abrir a boca e um deságue incontrolável caía sobre o corpinho ligeiramente encurvado para frente. E assim, como se ignorasse sua natureza mais aterradora, Carlota desaguava mágoas por horas e horas. Em um dia ruim, ela inundaria um quarteirão inteiro só com uma opinião qualquer. O que você acha deste livro? E chuva! Você gosta desta música? E uma tempestade tropical. Tão forte o desastre, quão fundo fosse cravado o rancor na alma. Quando finalmente se calava, já havia inundado um canto inteiro do mundo; e nem um pedaço de sol apaziguaria o seu coração. 

    Vitório, então, sentindo-se meio responsável por sua criação acidentada, teve a ideia de lhe presentear com um guarda-chuva de cabo torto. Sem grande cerimônia, desenhou em uma das mãozinhas de Carlota um objeto até simpático, que além de lhe emprestar certa elegância, a protegeria das consequências indesejáveis de sua alma. Mas Carlota insultou-se tão logo viu-se protegida da nuvem escura que cobria o seu céu. Jogou furiosa o guarda-chuva no chão. Seus olhos trovoavam de ódio. Estava verdadeiramente ofendida. 

      Dali por diante, não se sabe ao certo as palavras que disse ou as palavras que pensou em dizer, mas eram feias como descargas elétricas rasgando o céu de maio. E aquele aguaceiro inundou casas, afogou pessoas em suas rotinas desavisadas, transbordou rios, revirou o mar.

    Quando Vitório finalmente terminou o desenho daquele dia, ele estava assustado com as intransigências climáticas daquela menina. Percebeu, então, que a mesma caneta de tantas outras criaturas havia se partido ao meio. A tinha preta escorria pela borda do papel até sujar a escrivaninha; sua mão direita inteira suja de tinta. Ele olhou para a  mão e olhou para o desenho do papel úmido e transfigurado. Carlota chovia sem dar trégua. Era capaz de se borrar inteira num lamaçal de ressentimentos. Tão carente de sonhos bons, Carlota resistia em dilúvio impertinente. Se ninguém fizesse alguma coisa rápido, pensou Vitório, se ninguém estancasse os pavores de sua alma ou aprendesse a amá-la assim como era em sua natureza particular, Carlota viveria apenas para ver desmanchar o mundo.

     

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