Thursday, June 16, 2011

O Bom Amante

Não me telefonaram para contar. Eu li pelo jornal, apertado em um obituário tímido de dois centímetros quadrados, como deve ser o obituário de quem, supõem, não fez nada de mais da vida. Lembro-me de deixar a xícara de café sobre a mesa e dizer: Ele está morto, e então passar um tempo calada só com os primeiros cochichos da manhã, sem ninguém com quem poder conversar, sem ninguém por perto há tanto tempo.
Fosse anos atrás, e eu usaria talleur preto, chapéu e óculos escuros em seu funeral. Fosse anos atrás, e eu estaria aos prantos escondida no chão do banheiro para não me notarem toda despedaçada. E depois, apareceria em seu enterro elegante como nunca, fumando como ele havia me ensinado a fumar e cantarolando alguma música que ele gostasse de ouvir depois do sexo.
Hoje, estou velha demais para sofrer com tanta força. E ele mesmo se decepcionaria bastante comigo. Posso claramente ouvi-lo perguntar: Que tipo banal de mulher chora abraçada a um caixão?, como se ainda tivéssemos trinta e poucos anos e o mundo lá fora fosse um espetáculo completamente irrelevante - nós dois trancados em um quarto de hotel, os carpetes mofados e o perfume pesado de uma noite inteira sobre a cama.
Levantei-me da mesa sem saber o que fazer. Um telegrama de pêsames seria de extremo mau gosto. Sua esposa estaria agora desolada entre filhos e netos, um tanto embriagada por ansiolíticos, e oficialmente autorizada a amá-lo para sempre, como devem ser as viúvas dos bons amantes. Na parede da sala, fotografias antigas, gerações inteiras de suntuosa felicidade e aquelas viagens para Paris, batizados e casamentos.
Comigo era diferente. Ele aparecia geralmente em maio, pouco antes do tempo mudar de vez, naquela primeira noite de frio, quando o inverno ainda é uma vaga lembrança das outras estações; e não era de me perguntar coisas, nem se demorava em especulações de qualquer natureza. Por uma noite apenas me procurava, dizia: Estou só, não será por muito tempo, então tome um banho, compre um vinho e venha para cá, e assim passávamos horas nos acasos de nossas vidas, porque não éramos dessa gente nascida uma para a outra, muito pelo contrário, apenas dois acasos; ele tão seguro de sua família, eu sempre certa de meu futuro, mas por aquelas poucas horas, uma única vez ao ano, a lógica cansada de nossas regras estava suspensa. Casada e feliz, eu precisava que uma noite existisse para que todas as outras fizessem sentido, como vir à tona e respirar para mergulhar mais fundo em nossas pequenas circunstâncias.
Você não pode estar falando sério, quando diz que me ama - perguntou assustado certa vez sobre nossa cama. E a minha vergonha por ter-nos traído tão descaradamente. Bons amantes não se amam, e quando amam, é de tal forma organizada e discreta que não revelam em palavras soltas sobre a cama. No começo, nem seu nome eu estava autorizada a saber. Tive a chance de ver um dia gravado em um envelope, mas que amante ruim eu seria se me preocupasse com sua rotina, e quando quisesse, pudesse facilmente encontra-lo, e soubesse onde mora, onde vai, ou se me espera? Era ele quem deveria escolher o dia. Qualquer dia. E viver da ingênua satisfação de me ver desfazendo de tudo para ter com ele uma única noite. Às vezes, me trazia presentes, pedaços de suas viagens, livros sublinhados ou o que quer que acreditasse me “ensinasse a viver”. Você já viu Cassavetes? Já leu William Faulkner? Já provou Cocaína? Às vezes, não me trazia nada, entrava quieto, pedia que eu ficasse calada e o abraçasse forte – o olhar distante de uma criança triste.
No segundo em que eu pisasse naquele cemitério, mesmo tão velha, mesmo completamente anônima, eu tenho a impressão de que nossos segredos seriam revelados. Portanto, eu não pude me despedir. Você fica mais bonita a cada ano - me disse na última vez em que nos vimos, certamente mentindo, ou confuso com o tempo, porque os anos passavam impiedosos; os anos nos traziam novas histórias: um neto, um novo casamento, mas não importava em que momento estivéssemos da vida, restava a velha certeza de que maio sempre chegaria. Foi assim por muito tempo. Até que em um ano, maio não veio. Nem qualquer outro maio de qualquer outro ano. Uma espera gelada e vazia. Tenho por mim, que uma tarde qualquer, o bom amante se cansou de vir à tona e foi viver submerso na tranqüilidade de um amor de todos os dias. Porque é assim que acontece, mesmo os bons amantes se traem. Não compreendem a raridade de seu amor e um dia se banalizam em caprichos mundanos. Foi se trancar em uma daquelas fotografias. Foi ser covardemente feliz. Meu café frio sobre a mesa. O jornal se esforçando em qualidades resignadas: médico, exímio pai de família, deixa mulher, três filhos e cinco netos.
Teve uma vez, nós dois bêbados, os pés descalços sobre o sofá, já quase amanhecendo, e ele me perguntou: Você deixaria tudo para viver comigo? Deixaria seus filhos, sua vida para viver uma outra vida? E eu me calei completamente estarrecida. Um frio na barriga, os olhos molhados. Então, ele soltou um sorriso: estou brincando, boba. E um alívio soprou a minha espinha. Mais um pouco, e eu me revelo. Nem sei o que seria se tivesse tido tempo para pensar. Alguns segundos a mais e ele teria ouvido “sim”.

4 comments:

Anonymous said...

Preferiria que não tivesse o "sim" no final...mas gostei!

Anonymous said...

Apaixonante.

Anonymous said...

Um soco na estômago. E não me arrependo.

Anonymous said...

tava a procura duns ansioliticos que a unica coisa k me lembro e k eram pequenos comprimidos cor -de -rosa :) claro que o hit foi pa o seu blog...pode me ajudar a recordar o nome desses medicamentos ? estou em inglaterra se souber o nome da droga pode se que me safe my email isabel_elli@hotmail.com obrigada