Saturday, January 22, 2011

O Homem que Colecionava Bonecas

1

A mais antiga lembrança que guardo daquela casa é também a lembrança que mais me assombra os dias. Lembro-me de Leandro com pouco mais de três anos, como a imagem hesitante do adulto que viria a ser. Eu havia sido recentemente contratado por seu pai para cuidar da rotina da casa, e então recordo-me de ver o menino sozinho no canto da sala enfileirando uma dúzia de carrinhos exatamente iguais. Fiquei um tempo reparando naquela brincadeira organizada. Era curioso perceber a sua rotina particular, que a qualquer outra criança não teria a mesma graça, mas que a ele revelava-se o mais sublime dos hábitos. Existia certa ternura na maneira como mantinha seu pequeno mundo sob controle, como elegantemente ditava as suas regras e os limites de seu próprio universo.

Mais tarde, eu viria descobrir que aqueles carrinhos de madeira não eram brinquedos para qualquer um: tinham sido esculpidos à mão por um famoso artesão italiano. O artista esculpira doze carrinhos apenas, não por acaso os doze que Leandro enfileirava com curioso esmero. Seu pai, num gesto de orgulho irreparável, gabava-se em voz alta para quem quisesse ouvir: Não existe no mundo outros carrinhos como esses – e sorria orgulhoso do território do filho : todos os que existem estão aqui.

Ele mesmo, o pai, guardava nos amplos salões da casa os seus próprios brinquedos. Dizia-se o maior colecionador vivo de selos raros, o maior colecionador de antiguidades egípcias, de fósseis de invertebrados, de borboletas e orquídeas tropicais. Mesmo seu nome, Leandro Afonso VIII, era parte de uma coleção familiar de filhos únicos, que naturalmente estendia-se ao menino Leandro IX o peso de uma responsabilidade histórica, um pouco como se desdobrasse ele mesmo em uma existência futura ou fosse a extensão viva de um passado eterno.

Por aqueles dias, o Sr. Leandro VIII vagava pelos corredores da casa obcecado com uma nova coleção, queria completar sua estirpe extraordinária de Matryoshkas, ou bonecas russas, como eram vulgarmente chamadas desde sempre. Elas compunham juntas exatamente 172 peças, todas de valor inestimável, e haviam sido espalhadas pelo mundo especula-se que por volta de 1890 por um milionário ressentido, o que custara ao Sr Leandro VIII uma vida inteira para reuni-las uma a uma em um salão especial da casa. Faltava-lhe agora uma única peça, tão pequenina e delicada que só poderia ser apreciada com a ajuda de uma lupa de precisão, mas que sem ela sua coleção estaria vergonhosamente incompleta, como se aquela peça sustentasse as bases de sua dignidade.

2

Foi em maio de 1934, que o Senhor Leandro Afonso VIII e sua esposa partiram em busca da adorável Matryoshka. Obstinado com a ideia de que encontraria na boneca finalmente o seu descanso, o Sr. Leandro prometera ao filho de apenas dez anos, que esta seria a última peça de sua última coleção. Depois dela, viveriam sempre juntos na plenitude exata de quem conquistara rigorosamente tudo o que desejara da vida. Por isso mesmo, tudo foi ainda mais trágico; por isso a notícia da queda do avião nas águas do Atlântico foi ainda mais perturbadora e arrebatou de tristeza inconsolável todos os recantos da casa.

Não nos proibiram formalmente de falar sobre o assunto, mas ninguém disse uma única palavra por dias, nem os empregados, nem as babás, nem o pequeno Leandro. Quando finalmente resgataram os corpos do casal e então foram cremados em uma cerimônia sem grandes rompantes dramáticos, um menino de dez anos, calçando sapatos indefectíveis para um domingo de chuva, recebeu em seus braços, como quem quase não agüenta o peso do mundo, duas urnas de prata contendo as cinzas de seus pais. E com os olhos secos de quem se acostumou cedo demais com a saudade, Leandro IX subiu as escadas do salão central sem hesitar um único degrau e depositou as urnas no lugar dedicado a elas desde muitas décadas. Todos os Leandros pregressos enfileirados militarmente, todos os velhos sonhos muito bem guardados, se é que existiam sonhos tão diferentes dos sonhos de agora.

Nos dias que se seguiram à chegada das cinzas, eu ordenei a todos os empregados da casa que a rotina se mantivesse absolutamente inalterada. Uma tia solteira do pequeno Leandro se mudaria para a mansão e seria responsável por sua educação a partir de agora, e então eu poderia finalmente voltar aos trabalhos domésticos. Mal suspeitava o que conspirava a minha sorte.

Passaram-se então semanas, meses, anos. No aniversário de 13 anos de Leandro IX, enquanto eu limpava e organizava os livros da biblioteca, o menino, com a segurança irrepreensível de um senhor adulto, não fosse somente uma criança triste, veio até mim e disse: O Senhor deve partir e encontrar aquela boneca. Não importa quanto tempo leve nem quanto dinheiro gaste. Volte apenas quando tive-la em mãos. Nenhuma coleção permanecerá incompleta nesta casa.

3

Eu parti sem pistas, sem saber para onde. O ano de 1937 foi especialmente tenebroso na Europa, os humores prestes a desabar. E assim, por acaso, eu conheci o mundo, quase sem querer. À procura de uma boneca impossível, andei por esses becos todos, percorri as montanhas, os castelos, os lugares mais lindos. E posso dizer que para tudo que existe de diferente e inusitado no mundo há algo ainda maior que sustenta todo o encanto, que faz dos trejeitos do homem mais distante alguém estranhamente familiar, porque não importa o quão longe se esteja de casa, um homem só é tão somente um homem só, e a solidão faz de nós assustadoramente iguais.

Quando eu pensava em meu pequeno chefe, uma criança de olhos tristes dizendo: vai! - o dono de todas as vontades e de quase todas as coisas que alguém pudesse ter, eu seguia em frente à procura do elo que pudesse lhe trazer, quem sabe, a paz. Ou pelo menos amenizasse a dor constrita em uma pobre criança fadada a si mesma.

Para um criado como eu, que absolutamente tudo o que levava da vida cabia em meus bolsos rasos, uma viagem pelo mundo era um pouco como conquistar as minhas próprias coleções. Sem nunca ser dono de nada, mas sempre muito perto de tudo, eu secretamente roubava os rostos, as histórias, os lugares, e os enfileirava em lembranças tristes, felizes, incríveis, como se fossem as prateleiras de uma estante imaginária.

Pelos próximos meses, eu visitei cada vilarejo por onde passara uma Matryoshka. Colhi informações preciosas sobre o possível paradeiro daquela pequenina, para finalmente concluir que nem que levasse a vida inteira, eu jamais encontraria a boneca que faltava àquela coleção, e mesmo que eu a encontrasse, nunca teria certeza do que eu realmente tinha em mãos.

Com a Europa em Guerra, ficava difícil circular como antes, e então no sul da Irlanda, no começo do ano de 1940, eu conheci uma jovem (meio bruxa meio donzela), que me prometeu forjar uma boneca exatamente igual ao desenho que eu carregava a tiracolo. A ela eu pagaria 200 xelins e este seria nosso segredo eterno. Com a precisão extraordinária de uma grande artista, a boneca forjada era a réplica perfeita da Matryoshka perdida. Pude finalmente voltar para casa carregando um pequeno regalo, que definiria o sentido de nossas vidas.

4

Eu não saberia dizer o tempo que leva para que os olhos de um homem se cansem de todas as coisas livres, ou o tempo que alguém precisa para se entediar do mundo assim como é: inconstante, e deixar-se inebriar pela ideia de um mundo completamente sob controle. Desde a derradeira lembrança de Leandro enfileirando os carrinhos iguais, era assim que o mundo se apresentava a ele: em linhas retas demarcando territórios muito bem definidos. Mas Leandro IX, a criança que eu havia aprendido a amar como um filho, teria quase tudo o que desejara da vida, quase tudo, mas algumas pequenas coisas não dependeriam de sua vontade.

Quando cheguei à velha casa depois de três anos fora, os jardins estavam terrivelmente mal cuidados. Imaginei que desastre teriam sido esses anos todos, a displicência dos novos empregados, e lembro-me de me desculpar ao meu patrão antes mesmo de dizer-lhe qualquer coisa sobre a viagem. Ele respondeu duramente fitando-me de sua baixa estatura: Não me importa o jardim. Encontraste a boneca?, eu então saquei um pequeno embrulho de couro de minha mala e com a outra mão lhe entreguei uma lupa: A boneca está aqui, Senhor. Ele me olhou entre susto e gratidão, retirou-se imediatamente e foi ao salão onde guardava as outras 171 Matryoshkas. Ali dentro, permaneceu por longas horas.

Cada Matryoshka estava devidamente posicionada ao lado de uma réplica de si mesma, apenas um pouco menor. A maior delas tinha cinco metros de altura e a menor, quase imperceptível, não passava de um grão de arroz. Porque assim são as bonecas russas, um desdobramento contínuo de versões menores de si mesmas, uma se abrindo à outra, uma contendo a outra. Até que a última delas, a única que jamais é oca, dá fim à sucessão de existências iguais.

Leandro estava inerte diante desta metáfora maldita: uma existência que se repetia à exaustão até atingir o nada absoluto, como se o nada fosse a conseqüência inevitável para o seu legado. Mas o que o mantinha de fato ali parado, completamente absorto, não era a amplitude poética do significado que as bonecas guardavam, nem o respeito devoto à memória de seus ancestrais mortos. O que o mantinha intacto era a certeza de que sua tristeza não se aplacaria com aquela coleção de bonecas.

Pelos próximos dias, ele andou pelos salões da casa tentando descobrir qual seria a sua próxima obra, o quão complexo e espetacular seria seu novo feito. Passou noites imaginando as nuances delicadas que teriam cada peça, quais as idiossincrasias, o potencial de raridade de cada elemento. Ele sabia que precisava de algo tão poderoso, que tomasse por completo os seus dias de jovem adulto e quem sabe, ocupasse a sua vida solitária por longos anos. Ele seria portanto maior que seu pai, seu avô e seus parentes perdidos, seria a versão definitiva de um monte de rascunhos incompletos.

Exausto e sem ter ideia do que colecionar, Leandro IX pediu que eu preparasse o carro para leva-lo a Paris e lá aflorassem melhor seus pensamentos. Com a Alemanha em franca expansão sobre a França, não era aconselhável sairmos da propriedade para qualquer passeio pelas cercanias da cidade, mesmo assim, Leandro exigiu que eu o levasse de carro, pelo menos por uma tarde, para que as visões da Paris o inspirassem. Sabíamos dos riscos, mas saímos ainda de madrugada. Lembro-me que na relva molhada daquela manhã de primavera já se desenhava o terror dos próximos dias, como se o vento trouxesse de longe o mau cheiro dos soldados de Hitler.

5

Bem antes que chegássemos a Paris, em uma pequena bifurcação da estrada, nos deparamos com uma família de imigrantes poloneses, que inesperadamente caminhava em direção contrária ao carro. Tomamos um susto. Que tipo de gente estaria andando àquela hora pela estrada? Leandro ordenou que eu parasse o carro. Ficamos cara a cara com aquele homem maltrapilho, sua mulher cansada agarrada à mão de um filho pequeno e com outra criança no colo colada a seu seio. O bebê não deveria ter mais de 3 meses e mamava como se saído das páginas de Victor Hugo, eles todos meio sujos, todos com olhos de fome e desespero, pousando para um retrato ao mesmo tempo insólito e grotesco da vida.

Leandro, então, desceu do carro. Ele reparava atentamente aquelas pessoas, como se as ideias finalmente transbordassem de seus olhos: É claro! - dizia em voz alta. É isso o que eu quero - balbuciava em êxtase. Eu não conseguia entender, ou talvez me demorasse, porque no fundo não quisesse entender. Que tipo de loucura juvenil poderia tomar a cabeça de um menino a esta hora da manhã? Toquei em seu ombro e lhe perguntei sem querer ouvir: O que exatamente o senhor deseja desses pobres homens?, e a resposta que tive fez ventar tão forte o vento, que as copas das árvores se encontraram como se cochichassem verdades eternas. Eu já sei qual será a minha nova coleção – ele respondeu, apontando seguro para a criança no colo da mulher.

Um homem não tem preço”, minha mãe diria. Talvez até eu mesmo dissesse, talvez qualquer um. Faz sentido, parece razoável, não vivemos mais como os velhos imorais que acorrentavam negros pelos tornozelos e os escolhiam pelos dentes como cavalos. Somos criaturas mais sofisticadas. Em que momento, meu Deus, esta criança fora privada tão completamente da realidade para pensar que ali diante daquela pobre família de imigrantes, eu pudesse lhes fazer uma oferta para comprar seu filho como se fosse um pequeno móvel de antiquário? Que reação bestial terá este pai quando ouvir de minha boca barbaridade tão insolente?

No meio da estrada, Leandro me encarou de novo. Estava seguro como nunca estivera antes. Esquecera de repente de sua herança de selos raros, entediantes e inanimados, e já não podia com as bonecas e as orquídeas. A sua nova coleção derrubaria de vez os paradigmas de seus antigos finados. Seria obra tão deslumbrante, que cada peça só se formaria ao longo dos anos, na doce inconstância dos humores e das contingências inesperadas das criaturas pensantes.

Pois compramos o bebê por 1000 francos, um pouco menos, talvez. O pai não disse nada em qualquer língua que eu pudesse me desculpar, mas entendi seus murmúrios como um “muito obrigado”; a mãe apenas chorou, mas chorou silenciosamente. Não queria de forma alguma atrapalhar o nosso negócio. Em algum momento do futuro, quando Leandro IX já fosse um adulto, assistiríamos a ele discursando orgulhosamente sobre o dia em que fizera seu primeiro ato de bondade, porque para além da sutil ironia, às peças de sua coleção particular ele teimaria em chamar de “filhos”.

6

Que tenham tudo - ordenou Leandro com olhos brilhantes. Que falem a maior quantidade de línguas que alguém jamais falou. E que saibam cantar e tocar piano para que eu os ouça em um domingo à tarde, se assim quiser. Que sejam atletas vigorosos, mas também possam discursar por horas sobre qualquer assunto político. Que conheçam de arte, matemática e filosofia, e que se rasguem em sorrisos de dentes brancos, porque serão gente da melhor espécie, tratados pelos melhores doutores, ensinados pelos melhores mestres.

E com a ordem expressa de encontrar, selecionar e adquirir a maior quantidade de peças para seu novo ajuntamento, eu passei os próximos dias negociando com imigrantes foragidos um futuro melhor para os seus filhos desenganados. Nem era tão difícil encontrar argumentos para fazê-los acreditar em minhas palavras. Qualquer sopro de esperança já acalmava o calor dos fatos. Enquanto mal podiam alimentar a família, eu oferecia aos seus pequenos filhos o mundo inteiro pela frente.

Entre tutores e roupas caras criaram-se assim 15 jovens perfeitos. Seis homens e nove mulheres. E toda manhã por dezoito anos, acordavam e beijavam a mão de Leandro IX, “Obrigado, pai” - e só então desciam para as suas atividades matinais. No verão, tinham aulas de línguas, lutavam esgrima, andavam a cavalo. No inverno, tocavam piano, jogavam xadrez, encenavam peças de Shakespeare. Todo sábado, não importava a época do ano, eles não se deitavam sem antes desejar boa noite ao pai orgulhoso, desfilando as roupas caras que haviam ganho e cantando uma canção que ele escolhesse entre suas favoritas.

Leandro tinha tanta certeza de que esta era a coleção mais rara do mundo, que há tempos, nem se lembrava de suas Matryoshkas. Cada filho era em si, uma obra-prima, tão minuciosamente bem cuidado e tão obviamente grato a ele. Porque sabe-se Deus o que teria sido de suas vidas, sabe-se la o que teria feito a vida com eles.
Certo dia, deslumbrado com sua própria criação, Leandro IX pediu que eu enfileirasse seus quinze filhos na sala principal, porque já era tempo de lhes falar sobre algumas coisas da vida. Eu prontamente fui em seus quartos e ordenei que se vestissem e descessem imediatamente. Em 30 minutos estavam todos prontos, vestindo a roupa para cerimônias especiais e catalogados em ordem alfabética.

Meu Senhor entrou na sala com ares de quem podia dar conselhos: Que lindo é ver meus filhos reunidos. Por um segundo, até lembrei de minhas bonecas - e calou-se admirando a perfeição de sua prole. Eram ainda mais perfeitos que um dia imaginara e compartilhavam talentos que nenhuma outra prole daquela idade facilmente deteria. Percebeu, de repente, Juliette, a sua primeira aquisição: uma jovem de olhos azuis amendoados. Pegou em seu queixo, fazendo-a olhar em seus olhos: Filha, por que tem esta cara tão triste? - mas a menina recuou-se em pavor. Leandro tornou-se pálido. A sua filha tinha se esquivado como quem se esquiva de um monstro. Encarou-me espantado: Ela parece ter medo de mim - e voltou-se para a menina: Juliette, eu sou seu pai. Não deve ter medo de mim. Você me ama, não ama? Mas no lugar de palavras, da menina só escaparam lágrimas.

A vida desmoronava impiedosa diante dos olhos de Leandro. Tão tarde, ele dava-se conta de uma tragédia inconciliável. Procurava nos olhos dos filhos qualquer vestígio de amor, mas não encontrava nada além de velha gratidão: Eu dei tudo a vocês – esbravejava como a criança que sempre fora - E o que vocês querem mais? O que eu preciso fazer? Para salva-lo do próprio vexame, me aproximei discretamente de seu ouvido e sussurrei: Senhor, o amor é inegociável.

7

Um homem atento sabe diferenciar um silêncio de outro silêncio. Aquele que instaurou-se em Leandro era tão quieto, tão profundamente calado, um pouco como depois do silêncio, depois do luto, depois do nada. Além dele não existia nem a lembrança de si mesmo, assim como o que deve haver dentro da última Matryoshka, que de tão completa é indivisível, nele tudo se acabava.

Leandro subiu para o seu quarto. Estava em pedaços. Antes, fez apenas um sinal para que eu mantivesse as portas destrancadas. Ouvimos seus passos cansados e o relinchar de uma porta se fechar. Os meninos se entreolharam espantados. Não existia nenhuma regra para esta noite, eles poderiam inclusive, mas isso era muito estranho se pensado pela primeira vez, poderiam inclusive ir embora.

Do alto de sua janela, Leandro podia ver todo o jardim da frente, os bosques que permeavam a casa e um grande portão por onde saíam e entravam os carros e os convidados (que nunca de fato tivera). A lua cheia desenhava uma sombra azul nas paredes do quarto e Leandro simplesmente esperava que a noite lhe trouxesse algo inesperado.

Em cada sala do casarão, elementos raros enfileirados, etiquetados, catalogados. Desde sempre, o mundo inteiro representado por pequenas amostras de si, pedaços que ele pudesse guardar, pedaços que pudesse chamar de seu. Dono de tudo e de nada, porque embora suspeitasse que lá no fundo nem amor é remédio para a solidão, Leandro não sabia viver sem ter para si tudo o que quisesse ter, e agora, a única coisa que desejava era o sorriso sincero e desarmado de um filho, um detalhe banal e assustadoramente gratuito.

Aos poucos, cada um dos quinze jovens saiu pela porta da casa. Nenhum deles olhou para trás uma única vez. Leandro segurava-se para não se desfazer. Nunca mais ouviria falar dos filhos, sua pequena coleção de pessoas. Bem provável, que algum deles até sentisse saudade, porque não tinham exatamente ódio do pai, assim como um passarinho acostumado a viver na gaiola não sente exatamente ódio de quem o manteve enjaulado, mas quando se esquece a porta aberta, o pássaro escapa, porque esta é a sua natureza mais particular: ser livre e amar quando se é livre. E agora, Leandro, abandonado e mal acostumado, já não sabia amar as Matryoshkas, porque Matryoshkas não fogem nunca, Matryoshkas simplesmente existem entregues à própria sorte.

A casa vazia, o eco impertinente dos poucos passos nos corredores, os selos calados, as borboletas caladas, as flores caladas. Leandro sentou-se no chão e pensou: tudo isso é meu. De seus olhos caíam as lágrimas que havia guardado a vida inteira, e eram tantas lágrimas, que Leandro não teve dúvidas: esta é verdadeiramente minha coleção mais grandiosa.

FIM.

4 comments:

Cecília said...

Pensando em como um texto tão lindo pode passar sem um comentário sequer, percebi o quanto é assustador comentar num conto lindo desses. Você, viajante condenado a si mesmo, me liberta em viagens uterinas e extrasensoriais, e me faz companhia na minha solidão. Obrigada pelas belíssimas palavras, lembrando que uma outra pessoa, como eu, vai usar seu nome e dizer "você precisa ler uma coisa" pra uma outra pessoa. Beijo

Otávio Pacheco said...

Lindo conto. Embora longo para um blog tem leitura instigante e fluída, merece ser publicado algum dia.

bruno de paula said...

lindo conto !bem escrito prende o leitor e faz pensar parabes!hyolott

bruno de paula said...
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