Thursday, January 07, 2010

A Ciência

Marie nasceu inapta. Não era doença nem covardia, simplesmente estava ausente de sua natureza mais particular. Como um artista daltônico fadado a não ver os tons do verde, que chora pela suposição abstrata da beleza que não vê, ela apenas imaginava o amor, vagamente. Leu todos os romances, estudou filosofia, química, biologia. Tornou-se, talvez, a maior autoridade viva no assunto. Observou de longe o comportamento dos casais, recolheu amostras de sangue, saliva e suor; analisou a questão dos odores, dos perfumes, dos segredos da neurolinguagem. Chegou muito perto de desmentir as paixões em equações matemáticas e teorias evolucionistas, debruçou-se sobre longas teses acadêmicas e fichas de crimes passionais para, mais tarde, escrever um ensaio que rodou o mundo e a fez famosa mulher das letras.

Certa vez, rascunhou em um caderno: “Eles se encontram por acaso e, como por resultado de uma conjunção astral, resolvem conviver intimamente pelos próximos meses. Mal se conhecem e já dormem e acordam juntos, algo muito além da necessidade do sexo, porque sentem falta um do outro, e se comunicam várias vezes ao dia para narrar os detalhes mais banais de suas vidas. Curioso, porque muitas vezes nem guardam grandes afinidades, mas se bastam e então trocam títulos e compromissos públicos. Até que por outra conjunção, ou desarranjo, o que eu também não entendo, algo se quebra abruptamente. Assim frágil, inexplicável. E a intimidade de meses se desfaz em segundos. Tornam-se estranhos, ou percebem-se os estranhos que eram de fato. Não se cumprimentam mais nas ruas e se evitam pelo desconforto da estranheza. Tudo rápido. Estranho e íntimo confusos em um mesmo retrato”.

Mas Marie não era triste, nem louca, nem só. Sua condição não se tratava do avesso do amor, como em um psicopata; nem de rancor e amargura, como em alguém que amou demais e sofreu muito por isso. Ela simplesmente havia nascido desprovida da qualidade banal aos outros homens, daquelas tais sinapses nervosas, ou o que quer que fosse a razão para aquilo tudo. E, então, haveria de passar a vida para entender o que era tão simples e fácil, tão antes de qualquer razão e qualquer sentido.

Quando cantava canções, elas eram melodias com palavras impróprias; toda poesia carecia de maior utilidade além da métrica e da rima. O sentido das coisas – e isso era o mais insuportável- revelava uma dependência crônica a um único e infindável elemento. Mesmo as guerras e os deuses; mesmo as dores e os surtos, tudo era mantido por um solitário denominador comum. O amor impregnava os hábitos, apertava-se nos parênteses da História. Civilizações inteiras se explicavam a partir dele, pela falta ou pelo excesso. E as coisas todas, apenas utilitárias e funcionais como lhe eram aos olhos, não pareciam ter a mesma graça que aos outros mortais, então ela buscava obstinadamente.

Um dia, resolveu proceder uma experiência insólita. Em laboratório, com a ajuda dos mais renomados cientistas, e por semanas inteiras, ela ativou seus neurotransmissores e estudou a fisiologia secreta das paixões. Simulou as reações físicas de um beijo, de um abraço, da própria saudade. Como se adestrasse seu corpo a sustentar novos sentidos espontaneamente a partir de então. E não é preciso dizer que foi experiência vã. Neste período, traçou gráficos desconexos; pela casa deixava anotações rebuscadas, palavras com ímãs na porta da geladeira. Entre fotografias em gôndolas de Veneza ou em cafés de Mont Martre, expressões como feniletilamina, dopamina, serotonina, norepinefrina.

Sobre o amor perdido, Marie escreveu: “Parece ser o mais abominável dos terrores. Eles se recolhem em quartos escuros, choram ao despertar da manhã ou ao cair da tarde. Choram, na verdade, a qualquer momento, em qualquer lugar. A mais inocente canção desata fantasmas remotos. As coisas belas são pálidas e mortas. E mesmo assim, e muito frequentemente, se auto-flagelam, porque existe prazer inconfessável na dor, uma adoração popular celebrada em ritos milenares que a cultuam em música, verso e prosa. Parecem querer sofrer.”

Seu inferno era sua sabedoria. Os anos passavam e Marie, incólume, sobrevivia intacta aos desafetos, se é que existiam. Até bem velha, tinha o hábito de passear pelo parque sozinha e escrever sob a sombra de uma árvore as suas sóbrias conclusões. O outono era bonito, mas não lhe fazia lembrar de ninguém; não existia qualquer intenção no amarelo além da cor do sol e o vermelho das folhas quase mortas era silenciosamente vermelho. Bem que podia pensar, que o amor era então o seu único amor, mas nem isso. A sua curiosidade era meramente técnica, não lhe suava as mãos, nem lhe dava calafrios.

Certa vez, já nos seus últimos dias, pagou um garoto que passava e lhe fez a seguinte oferta: “Venha para a minha casa. Não quero que me desnude, nem faça sexo comigo. Diga simplesmente que me ama repetidas vezes, milhares de vezes se possível, de todas as maneiras que existirem”, e o pobre desentendido passou as próximas horas inventando o amor. Marie, de olhos fechados, como se respeitasse a robustez de sua esfinge, ouviu e esperou que algo acontecesse. Mas nada. Nem uma brisa soprou.

Em seu túmulo, pediu que estivesse escrito: “Eu te respeito, porque mesmo eternamente imune, eu nunca serei tua cura”. Mas infeliz de Marie que não viveu o amor de fato. Não sentou-se à noite na areia da praia para escrever um nome e esperar que o mar acalmasse a sua saudade, nem jamais acreditou que os anos trariam melhores lembranças para o azul daqueles olhos. Marie não amou nem sofreu. Nem teve culpa disso. Sob os seus pés o mar cravejava desenhos calados; sobre a cabeça, as estrelas não conspiravam nada além das pobres estrelas que eram.

3 comments:

Anonymous said...

ótimas imagens, muitas passagens da vida de alguem com mais de 27.

beijos, te amo

Anonymous said...

oh, god! throbbing...

Tatiana Pinheiro said...

"E a intimidade de meses se desfaz em segundos. Tornam-se estranhos, ou percebem-se os estranhos que eram de fato."

So true. Belíssimo texto.