Monday, August 24, 2009

O que resta de nós

- Um brinde a nós – gritou André, equilibrando-se do alto de um banquinho de madeira, com um copo de cerveja na mão e lágrimas nos olhos - porque somos os filhos da puta mais felizes do mundo – completou o brinde, agora ainda mais entusiasmado, ameaçando começar um discurso apaixonado, que ele mesmo desistiu alguns segundos depois.

Tínhamos setenta e poucos anos e estávamos em um boteco da Rua Ataulfo de Paiva discorrendo sobre o que havíamos feito da vida, enumerando nossas pequenas revoluções. Em 2054, o Rio de Janeiro era a memória inconveniente de todas os amigos perdidos, uma cidade ofegante aniquilada pelos próprios caprichos e mesmo assim um tanto mimada por deus; e nós não tínhamos nem idade nem paciência para tantos rancores, então simplesmente amávamos a cidade e as nossas lembranças de lá.

- Para os nossos pais foi mais fácil - disse Camila, interrompendo o silêncio com uma frase estranha, olhando para dentro do seu copo como se encontrasse ali as suas secretas conclusões – Eles já nasceram entre inimigos postos. Nós tivemos que inventar os nossos - depois calou-se com a frase suspensa no ar, que de tão vaga e leve, flutuava entre as nossas cabeças brancas, despejando aqui e ali doses particulares de sentido.

Quando inventaram as primeiras drogas para esquecer amores, éramos jovens e fomos para a rua brigar pelo direito sagrado à dor. Lembro-me de nossas exatas palavras: “quem não sofre desaprende a amar”, uma bobagem romântica para combater inimigos abstratos. Mal sabíamos que era parte de um movimento muito maior. Em pouco tempo, os sentimentos eram todos catalogados em cores, as intenções eram medidas em doses terapêuticas e distribuídas nas prateleiras das farmácias. Tomava-se remédio para tudo, para se ver mais graça nas coisas, para se ter razão para acordar, para se ter vontade de criar os filhos.

- Vejam vocês que engraçado – falou Beto com a voz ligeiramente embargada – Eu estava exatamente aqui há quarenta anos, quando acendi o meu último cigarro. E me lembro como o fumei demoradamente, tragando e enchendo o pulmão com aquela fumaça suja, saudoso por uma liberdade perdida, por meus personagens do cinema, por qualquer coisa que aliviasse. Naquele ano, nos proibiram de fumar nas vias públicas, no calçadão e na praia, e então, eu e mais quatro amigos, que já não podíamos fumar quase em lugar nenhum, nos juntamos para nosso último trago. O Governo havia decidido que homem bom era homem feliz e saudável, e as pessoas todas pareciam concordar com ele, menos eu. Hoje, meu médico disse que aos setenta e três anos, não existe mancha no meu pulmão. Disse que eu devo viver mais uns trinta anos, que eu sou homem de sorte, forte e feliz.

A lamúria de um cavaquinho embalava a tarde vermelha e vazia. E bebíamos saudosos de nós mesmos, recitando profecias cansadas e falando as bobagens que os velhos falam quando sentem saudade das coisas que deveriam ter sido e não são. Mas éramos convenientemente felizes. Nossa antiga idéia de futuro vagamente se parecia com o futuro de fato. Este lugar, por exemplo, de alguma forma já era o futuro há quarenta anos, quando Beto acendeu o seu último cigarro. Estava tudo anunciado. Andávamos nas ruas com medo, as pessoas se matavam por dinheiro, diziam que a corrupção era a nossa argamassa genética, e então decidiram que deveríamos ser todos tratados. Nosso medo foi quimicamente remediado, nossa violência e corrupção foram dissipadas com intervenções químicas de passividade, e nos tornamos serenos e pacíficos. Hoje ninguém tem medo de andar nas ruas ou de nada mais no mundo.

Camila sacou da bolsa um vidrinho azul, pingou duas gotas em cada um dos nossos copos e disse: “Para o dia entardecer mais bonito”. Demos todos um gole e contamos até dez para sentir a brisa soprar mais fresca. Então eu disse:

- O meu neto se casa amanhã com uma amiga da faculdade e um colega do bairro. Vão viver os três em uma casa linda de Santa Tereza. Ela congelou os óvulos para os seus quarenta anos. Antes, disseram que querem aproveitar a vida. Estão certos.

Daí, André subiu no banquinho mais uma vez, fechou os olhos molhados e gritou: “um brinde a nós, que somos os filhos da puta mais felizes do mundo”, que era a frase que mais adorava dizer. Todos rimos e brindamos pela tarde, pelas mil nuances do vermelho no céu. E ficamos assim calados, Beto com os olhos fechados, Camila procurando algum novo segredo perdido em seu copo, André no alto do banco e eu olhando para eles, tentando encontrar palavras que descrevessem nossa felicidade. Duas gotas e a tarde caía mais bonita. Não sabíamos ao certo o que era verdade ou mentira, nossas contingências sempre muito bem tratadas, nossos desejos nunca tão arredios. A brisa soprava fresca e tudo de ruim parecia não existir.

3 comments:

vera egito said...

bela cena, essa.

Luís Antônio Vellez said...

Oh admirável Leblon novo!

Otávio Pacheco said...

Imagino a sua voz narrando esse texto enquanto leio. Acho que é um pouco do que sobrou das nossas noites em claro fazendo textos e gravando offs do nosso programa. Engraçado, agora que a maior parte já passou dá uma nostalgia...