Friday, January 09, 2009

Breviário das tardes sujas


Meu divã é a coisa mais cafona que existe. Sorrateiro, dissimulado, couro de vaca malhada de pelo escovado. Eu não entendo o meu analista, por que alguém compraria aquele divã? Mas meu analista é tão vago e silencioso, que parece ser bom. Para ele eu conto o que se fez da vida, depois faço um cheque e encenamos educação protocolar. Existem tantos livros na sua estante, que eu penso que, se por acaso, ele tiver lido a metade deles, pelo menos é uma pessoa educada. Numa terça, lia Nietzsche, outro dia, A Obra Completa de Nelson Rodrigues - quase o suficiente para entender a mundo. Mas eu evito as fotografias pela casa, todo dia, enquanto ando pelo corredor até o quarto onde fica o meu divã, sinto a presença de pequenas memórias pregadas na parede, mas não ouso virar o pescoço, olho para baixo, sigo em frente. A foto de um analista criança não deve ser jamais revelada, porque eles não nasceram, nem tiveram história. Quando eu fecho a porta de seu apartamento e vou embora, ele se apaga, recolhe-se em uma dimensão particular. Prefiro não saber demais.

Nunca soube se Freud fazia sexo, Nietzsche definitivamente não fazia. Eu chego em casa e devoro uma caixa de torrones caseiros, enquanto assisto à Dexter na televisão. Quando eu era pequenininho, queria muito ser psicopata, mas isso não é uma questão de escolha, de acordo com a Superinteressante, psicopatas nascem psicopatas, são seres extremamente sedutores, mais inteligentes que a média e com incapacidade inata para sentimentos banais. Todos os meus sentimentos são banais. Talvez por isso eu repita dez vezes a mesma cena do dvd para chorar pelos mesmos motivos. O choro conduzido é um poderoso exercício de auto-conhecimento, ensaiamos assim nosso próprio vexame. Eu já chorei a morte de todos os meus parentes vivos, já ensaiei o que diria em seus enterros, já, inclusive, escolhi a música do meu próprio funeral. Quero poucas flores, melhor que não seja em igreja, melhor que não tenha padre, melhor que toquem a nona de Beethoven. Eu sei que soará óbvio, mas é melhor que me enterrem também. Eu acho um tédio a nova moda das cremações, mais cafona que vaca malhada no estofado do meu analista.

Eu chego atrasado no trabalho. Fui cooptado pelo trabalho há pouco mais de dois anos. O trabalho não me trouxe dignidade, me trouxe só um pouco de dinheiro. Eu deixei de gostar de cinema no dia em que entrei em uma produtora pela primeira vez, porque o amor não pode ser técnico, só romântico. Não me espantaria se um louco dissesse que todos os floristas odeiam flores, todos os taxistas odeiam carros e todos os ginecologistas são gays. Além disso, eu vivia num prolífero ócio criativo às custas do meu pai, e embora eu definitivamente não queira voltar a ser sustentado por ele, era um tempo de muitas idéias. Hoje, eu sei que o segredo do Cinema se esconde nas linhas de uma planilha Excel, e isso não é nada encantador. Pedi para que me contratassem um estagiário para que eu possa fazê-lo deixar de acreditar no que mais ama. Será um exercício sádico, mas ter um estagiário é um pouco como ter um filho. Eu sinto que o caráter dele será formado a partir do meu, e eu fico pensando nos prazeres que terei com ele. Talvez ele chore algum dia, talvez vire um monstro, ou quem sabe supere o mestre em tudo, daí, eu, mais velho e morto de inveja, diga a odiosa frase: “não se esqueça de onde veio, garoto”.

Eu não me esqueço, fui criado por revistas em quadrinhos da Mônica, programas de auditório da Xuxa, aulas de catequese frustradas, discussões calorosas sobre o governo de Collor de Mello, festas de rodeio no asfalto em Goiânia, filmes pornográficos nas tardes rarefeitas de São Paulo, banheiros inexplicáveis de uma boate vermelha da Rua da Consolação, pequenas moedas de Euro para comer congelados na Espanha, sexo anônimo na Internet, livros baratos sobre o nada e suas variações esquemáticas, pequenas concessões ideológicas pelo amor ao dinheiro e à Paris, de modo que, embora não pareça a princípio, eu sou uma pessoa boa.

Meu analista cruza as pernas desgostoso. Faz cara de nojo e preguiça, mas não diz o que verdadeiramente pensa de mim. Eu tenho a impressão de que ele, a qualquer momento, chegará à conclusão de que sou inapto para o convívio social, e me despachará para um desses asilos psiquiátricos, onde as pessoas fumam e conversam com as suas próprias fezes. De repente, um pigarro. Ele arranha a garganta, passa uma mão na outra, vasculha alguma bobagem lacaniana no cérebro, e diz: você disse blá, mas quando você diz blá, o que é blá blá blá para você? Eu penso um pouco. E no milésimo de segundo antes da resposta, ele me antecipa com uma alegria que não se esconde no olhar: vamos parar por aqui? You, son of a bicth. Claro, até terça que vem. Maldita educação, que mamãe me deu. Corredor-cheque-não posso ver as fotos na parede-aperto de mão apertado-até logo. A primeira coisa que ele me ensinou a duvidar foi de tudo que eu tinha certeza demais, depois ajudou a tornar verdade todas as minhas mentiras e mentira todas as minhas verdades. Talvez, ele seja um psicopata, meu deus, como eu não pensei nisso antes? Talvez ele tenha matado a vaca que cobre este divã com as próprias mãos, e depois escovado seus pelos por noites a fio, cantarolando alguma música estranha, que só ele entende o refrão.

A vida é uma ficção. O que conta é o conto que se conta, o resto é bobagem. Alguém bate na porta da minha casa. Eu dou uma pausa no Dexter, é Mariana, a vizinha ao lado com um dedinho do pé quebrado, dividida entre dois amores. As minhas pausas para fumar, eu que não fumo, uso para contar a ela episódios da minha vida sexual; e ela, romântica, conta episódios em que quase fez sexo. Daí convivemos pacificamente nas construções diárias do que pensamos de nós mesmos, dos personagens que preferimos atuar, dos nossos próprios folhetins. E ela fuma, fuma. Já é quase noite. Você acha que essa roupa me engorda? Não, Mariana, essa roupa não.

3 comments:

Stand up No salto alto said...

Amei!que texto delicioso, me transportei...quanto estagiário estou louca para ser adotada! hehehe
Parabéns pelo blog vou acompanhar e recomendar
beijão

Cacá

Anonymous said...

Na vida existem os psicopatas e os FDP.
Essa sim e a descricao de um delicioso FDP !!

Anonymous said...

Você sabe viver demais.