Thursday, February 08, 2007

Em linhas tortas

Paco acordou pensando que tinha morrido e que o céu era um emaranhado de gente nua dormindo de pernas e braços trançados sobre o chão imundo de um apartamento em Barcelona. E o que deixava ainda mais parecido com o céu eram as garrafas de vinho tombadas, carreiras incompletas de cocaína e uma vitrola tocando Nina Simone há horas. Ele coçou os olhos, como faz um menino que não acredita no que vê, e não sabia muito bem como tinha chegado ali, porque acordava entre estranhos anjos caídos - alguns tão jovens e belos, outros com os olhos pintados de negro, e aquela tatuagem de coração cruzado com uma flecha.

O ocaso já se revelava entre as dobras das cortinas e fazia filetes de luz na atmosfera pesada dos milhões de cigarros apagados. Paco levantou-se e andou até a menina sentada sobre poltrona tão alta, que não lhe permitia tocar os pés no chão. Ela era a única criatura acordada naquele lugar, chupava um pirulito de cereja e cantarolava o refrão da música como se entendesse coisa alguma em inglês. Ele sentou-se numa cadeira ao seu lado, passou um tempo reparando nos seus intervalos – estava completamente nua, protegida por uma palidez virginal, como uma criança que se esconde do sexo no próprio sexo, a garota parecia saída da capa de um disco de Led Zeppelin. Paco não quis interrompê-la, porque ainda que ela não fizesse nada além de cantar, era um nada todo circunscrito, tumultuado, o espelho do nada. Mas foi ela quem disse: sabe o que eu gosto em você? (depois abriu os olhos, deixou o pirulito em um cinzeiro e preparou uma raia de cocaína sobre o braço da sua poltrona) é que dentre as coisas que você ama, não há nada que não ame profundamente.

Paco enrubesceu as bochechas. Já nem se lembrava mais de seus antigos escrúpulos. Esquivou-se incomodado pela garota e descansou os olhos sobre os corpos que ainda dormiam na sala. Tentou encontrar alguma lógica, procurou neles a sua própria lógica , um resto de coerência naquilo tudo, porque todo tipo de gente dormia ali, silhuetas indecifráveis acumuladas pelas beiradas do sono, e talvez porque ainda dormissem (e só por isso) estavam desarmados de qualquer esquema- eram mais leves porque não se explicavam. Paco teve medo que a garota voltasse a dizer coisas que lhe esquentassem as bochechas, então, colocou depressa um cigarro na boca, levantou-se, e com o cuidado de não pisar em ninguém, saiu pela porta do apartamento. Em menos de quinze minutos, já andava aliviado entre Barceloneta e o mar.

A cidade andava lilás e Paco, um só. E até onde alcançava a tarde, não haveria cor, nem excesso de zelo, nem altura, dinheiro, nem a mais singela história, nem ninguém que o fizesse deixar de ser só um. Você dormiu com todos eles, poderia ter dito a garota, mas não disse. Paco saiu mais cedo e agora se sentia seguro bem longe do céu (você estava bêbado e sussurrava coisas macias, e era tão patético e desesperado, que penetrava as unhas nas costas do primeiro que lhe desse um pouco mais de atenção). Paco andava rápido, o cheiro úmido das coisas do mar esfumaçava a paisagem, seus escrúpulos voltavam como refluxos amargos. Viu em sua mão esquerda anotações de uma caneta azul, mas já não podia ler o que estava escrito nela, talvez o nome de alguém, o telefone, a esperança vulgar de, quem sabe, um dia ser dois. Mas o azul suado se enveredava pelas linhas tortas, o futuro era ilegível a ele.

Paco sentou-se em um banco perto da praia. Estava exausto, ainda passeava com os dedos sobre caminhos azuis, quando um estranho sem rosto, facilitado pelo tamanho da noite, lhe assobiou a alguns passos dali. Paco levantou a cabeça, apertou os olhos tentando enxergar, acendeu outro cigarro e não demorou para seguir o estranho pelas ruas estreitas de Barceloneta. O homem entrou num prédio velho com cataventos e flores nas janelas, Paco subiu logo atrás dele. No terceiro andar do prédio, havia uma porta aberta. Dentro do apartamento, o barulho do chuveiro ligado e a brisa de um banho morno. Paco entrou, andou devagar até a porta do banheiro, o vidro do box estava embaçado; lá dentro, o homem sem rosto cantava com uma voz de barítono timbrada. Na toalha branca pendurada na porta, Paco viu bordada a letra K, e “K”, de tão pouco, era tudo que ele precisava saber.

4 comments:

Anonymous said...

Lindo (s).
Não pare, por Dios.

Anonymous said...

k o que comentou na menina na janela?

i am impressed

sptrinta@hotmail.com

Anonymous said...

Parabens mesmo.
Fluido, intrigante, inteligente, original, interessante.
Dá vontade de ler mais.
Surpreso por encontrar um talento desses na internet, onde a maioria dos escritores são de capacidade duvidosa.
Parabens.

Anonymous said...

Se puder, adiciona be_kum@hotmail.com pra eu ter o prazer.