Monday, January 08, 2007

Menina na Janela

Onde não há madeira nem tijolos, existe o vazio onde me ajeito, abraço os joelhos, apoio as costas, encosto a cabeça e deixo ficar. Sem compreender. Passo as tardes assim, se alguém me chama, finjo que não ouço. Do tempo em que estou à espreita dos homens, eu me tornei este lugar. O vão da parede branca e descascada da velha casa é igual a todos os outros vãos de todas as outras casas do mundo. Chama-se janela. Nesta, habita uma menina desgarrada, vestido de algodão cru bordado com finas flores, cabelos loiros embaraçados sobre ombros tão magros; na calçada lá embaixo passeia gente de toda espécie, meu coração partido em tijolos vermelhos e a alma que eu sei lá de que natureza é. Mas não é boa. Outro dia, vieram pedir para que eu não machucasse mais corações (o meu, que é de pedra), disseram: "o seu, que é de pedra, não me interessa, mas não seja mesquinha, menina, não cause nos outros a dor que você não pode sentir".



Eu não sinto esta dor, mas sinto tanta falta. No buraco onde caibo entra vento vindo de todas as partes, mas dor não existe. Quero tatuar a janela nas minhas costas, um desenho simples: retângulo aberto num céu azul de poucas nuvens. Assim serei janela para dentro e para fora. Assim entenderão que onde dor não há ainda existe muita coisa. “A vida não pode ser só ver passar quem está de fora”, resmunga mamãe lá da cozinha, mas é à noitinha quando me assalta a saudade de quem prometeu um dia chegar e mudar tudo, e mesmo que durasse só um dia, prometeu que seria mais fácil viver dali por diante, daí eu fico calada, mamãe traz meu prato e hoje eu janto aqui mesmo, como todas as noites, na vigília deste céu e deste chão.



Às vezes, mamãe vem passar a mão nos meus cabelos, e eu reconheço o amor cansado entre os seus dedos, por alguns minutos, ela se demora num cafuné resignado. Não foi sempre assim, não fui eu sempre assim. Eu já guardei um desses diários de colecionar segredos. Eu era menina de roubar rosas e fazer planos bons. Mas numa madrugada qualquer, me desgarrei. O rebanho atravessava o campo, e tudo que eu mais queria era me extinguir, ver minguar nos meus olhos todo aquele alvoroço. Quando cheguei em casa, naquela manhã, sentei-me na janela e deixei que me despedaçasse em porções delicadas do nada. E não foi esforço tão imenso suportar o mundo nas costas.




Mamãe, enquanto me adula, conta que, antes de eu nascer, viveu nesta mesma rua, um canibal. Diz que não se tratava de canibal qualquer, desses das páginas policiais. Ela conta que "Pancho" só se alimentava da carne de quem ele amasse profundamente. Eis sua grande tragédia: quando amava, sentia incomodar no corpo fome tão incontrolável, que devorava pele, carne, ossos, alma. Daí chorava noites inteiras, como um lobo chora lambuzado em sangue. E pela cidade, seus lamentos ecoavam nas paredes das casas - um grito tão desesperado, que por noites se fazia impossível dormir. Até que um dia, cansado do próprio drama, recuado na natureza de sua fome, Pancho prometeu nunca mais se fartar de carne humana, prometeu nunca mais amar. Mudou-se para uma casinha isolada à beira do rio e ali viveu dezessete anos completamente só. A vida serena como uma paisagem de inverno. Pancho só pescava, lia livros, e a sua solidão era inofensiva à noite e às mulheres, a cidade dormia finalmente tranqüila: Pancho encontrara a sua janela.



Mas pela ironia dos opostos extremos, do outro lado da montanha, vivia Olívia, mulher que nunca havia sido amada por ninguém. Nem em todos os seus casamentos, nem na meia dúzia de seus amantes, Olívia sabia que amor de fato não tiveram por ela. E era dor tão insuportável aquela verdade triste, que Olívia desejou, um dia, ser amada pelo canibal, porque assim teria a certeza indubitável quando ele a olhasse com tanto amor, que salivasse de fome e gozo. Foi quando resolveu bater à sua porta. E depois, todas as tardes seguintes ela voltou levando presentes. Passaram-se meses: Pancho sem querer amar, Olívia preferindo a morte.



Da janela, que em princípio só se deflagra o instante, também se enxerga os trejeitos mais antigos do homem. Mamãe nem precisava dizer. É claro que um dia, esfomeado por tanto amor, Pancho devoraria Olívia. O amor sempre foi a loucura desta terra. Na janela, eu espero. Minha sina é ser este lugar; é ser toda fronteira - nem dentro nem fora, como num espaço lógico impossível. Não faço por mal e não faço por bem, não me lembro ao certo do que não me esqueci ainda; nunca tive o que sou inteira feita dele. Quando eu fizer a tatuagem nas minhas costas, ventará vento vindo de dentro de mim.

3 comments:

Anonymous said...

muito bom, como sempre

Anonymous said...

...nem sempre volta, e cada vez e mais facil que nao o faca. Certo, as vezes o garfo e do tamanho de uma piramide, ou o garfo de muitos funcionarios, mas nao deixa de ser garfo, ou instrumento que o homem usa para penetrar, desgarrar e devorar o que deseja. E os romanos teriam adorado esses garfos, bons engenheiros que eles eram.

helsinki1000@yahoo.com

Anonymous said...

eu sou a menina na janela mas ao contrario, ja cansei d esperar e agora sou uma loka em busca dos luxos q ainda estão por vim. Adorei tudo oq lí aki,seria mto bom trocar idéias c/ o autor se kiser......
aninhap-moon@hotmail.com
bjux