Thursday, July 20, 2006

Depois das horas

Para Lucy Andrews, Carlos Alberto Nina, Erik Jimenez e Stephan Möellman

Os dois cheiravam a cerveja e cigarro, não necessariamente nesta ordem, mas cheiravam, porque logo que subiram no trem, perceberam como os passageiros se revezavam entre nojo e misericórdia. Você está bem? - perguntou ela, enquanto tirava algo de sua bolsa de tricô. Eu não estou muito bem - respondeu ele, sentando-se em um dos lugares livres do vagão, apoiando a cabeça no encosto da poltrona, como se precisasse descansar um pouco. A verdade é que alguns anos mais tarde, quando manhãs como aquela fossem raras, quase impossíveis, o mesmo rapaz diria numa mesa de bar que existiu um lugar, em outubro, onde fora feliz por doze horas seguidas.

Ela terminava de tirar da bolsa sua máquina fotográfica, eu fiz fotos de nós dois, então se sentou na poltrona ao lado dele. Os dois encostaram as cabeças uma na outra e deixaram que as fotografias passassem sem pressa. O trem voltava para casa, as ruas todas, o trilho, as músicas tristes. As outras pessoas embarcadas iam para o trabalho ou para qualquer lugar que exigisse demasiado esforço, porque se equilibravam bravamente nas sacanagens do sono matinal. Eram de uma gente reta e com cheiro de colônia, dessa gente antes de qualquer coisa. Os dois, no fundo do trem, voltavam tortos, voltavam muito depois das horas, porque as horas entortam, como bem se sabe. Eles mesmos haviam anoitecidos retos e filhos de bons pais, mas pela manhã voltavam tortos e cheios de fotografias.

A garota disse: isso é tudo, desligou a máquina e a guardou de volta na bolsa de tricô azul, que havia comprado em uma de suas viagens pelo terceiro mundo, onde costumava purgar suas culpas e fazer safari. A paisagem na janela era seca e velha. Tão cinza, que borrava de outono tudo que passava por ela. Os dois se calaram, mesmo que antes já não dissessem quase nada. As cidadezinhas tão infelizes à beira da estrada passavam. E pensar que alguém nascera e se criara ali. Talvez não, talvez fossem cidades feitas para se ir embora. De tanto se ver o trem passar, ninguém durava até envelhecer - sempre órfãos, viúvos, fantasmas: um fluxo contínuo de mães em prantos, casas desfeitas, filhos pródigos.

Escorados um no outro, os dois jovens estavam exaustos, mas estranhamente certos de que para aquele canto do mundo, não voltariam jamais. Não porque tivesse sido um erro, muito pelo contrário, mas de tão acertado seria um engano voltar e encontrar no horizonte a verdade estéril das coisas que apenas são no momento exato que deveriam ser, depois desfalecem, definham e morrem. Era até melhor que naquela tarde mesmo, um vento varresse e não restasse pedra ou testemunha, varresse até as fotografias, quem sabe.

O rapaz tirou os olhos da janela, voltou-se para a garota, quis perguntar o seu nome, seu endereço, para que pudesse mandar uma carta, quem sabe perto do natal, mas recuou-se logo em seguida - resolveu salvá-la do constrangimento, afinal, em toda a vida, não havia escrito algo que valesse o real esforço da atenção. Com muita sorte, na próxima cidade, ela desceria e acenaria um adeus definitivo. Ele então não leria palavras na sua boca, não guardaria seu nome em guardanapo, não faria o menor sentido se chorasse. Seria o fim de tudo, e tudo é uma noite só. Depois, quando fosse a sua vez de desembarcar e aí chegasse em casa, dormisse e só acordasse no dia seguinte, já teria se esquecido, mas se por acaso não tivesse, não haveria mais nada que pudesse fazer.

O trem parou de fato (as pessoas pensam mais rápido com o trem em movimento, com o trem parado, quase não se tinha pensamentos úteis). A garota se levantou, estendeu a mão, disse: quando eu chegar em casa, vou encontrar um cachorro com fome, um quarto inabitável e as louças sujas na pia, exatamente como quando as deixei. Foi muito bom te conhecer. O rapaz estendeu a mão em resposta, disse: “adeus”, e adeus foi tudo que disse. Ela saiu, ele a acompanhou com os olhos por um instante, até que se perdesse de vista na estação. O trem logo voltou a andar, e ele já desenhava coisas estranhas com seu hálito condensado no vidro da janela. A cena era, sem muito esforço, bonita.

Teve, inclusive, um momento na velha noite, que tudo parecia tão novo e forte, que ele pensou ser impossível suportar, como se a felicidade transbordasse e escorresse pelos seus ouvidos. O seu medo era que depois de experimentar as horas, não mais conseguisse se submeter à velha ordem das coisas. Mas estava enganado, sempre se pode com a velha ordem das coisas. E não se sabe se isso é bom ou ruim, mas não faz diferença alguma saber.

Lá, onde há pouco embarcara, ninguém havia se traído uma única vez. Lá, tudo era infestado de luzes e outros aspectos das coisas banais. O amor, por exemplo, era simples. Daí, quando restavam apenas alguns gatos pingados, e se provava do doce azedo das esquinas escuras, o sol entrou pelas frestas e inundou as pupilas abertas, penetrou os poros; a noite resistindo, brava que era, correndo no sangue, a noite se debatendo, e o sol fazendo juízo, onde não era para ter existido juízo algum.

Cada desenho que o rapaz fazia no vidro embaçado do trem, o mesmo sol tratava de apagar, transfigurava suas gaivotas em pterodátilos. As paisagens bucólicas minguavam fora e dentro do homem. Ele estava cansado de ter saudade das coisas, de toda gente que jamais voltaria a ver, das horas que já não seriam como haviam sido, dos lugares que não estariam nunca mais, ainda que ele voltasse cem vezes aos antigos lugares, os lugares teriam outras razões, porque aquelas razões primeiras eram perfumes antigos deixados abertos.

4 comments:

Anonymous said...

Eh...saudade! Mas, precisava cheirar a urina??

Renata Maria said...

Você escreve muito intensamente...
Belas e palpáveis palavras.
Relato de fatos, cores, lugares, cheiros, sons e sentidos...pude ver e por vezes sentir essa saudade.
Saudade do que foi, do que será e daquilo que nunca existirá, não além do sonho ou vontade de um algém.
Prazer em conhecê-lo!

Anonymous said...

gosto sempre de ler cada letra...
sinto o cheiro das sílabas...

Anonymous said...

Belíssima atmosfera!!

Consegui projetar um curta em preto e branco na minha imaginação a cada parágrafo.

"As razões primeiras eram perfumes antigos deixados abertos..." Guardarei esse trecho comigo.