Tuesday, February 21, 2006

Notas de um colapso

Para Sandra Rodrigues

“Querida Sandra, a minha vida anda tranqüila em Barcelona, razoavelmente sem grandes surpresas, não mais como a vida dos velhos tempos”.

No Portal del Angel que tudo começou, enquanto eu tentava escrever uma carta de saudade ou desespero para uma velha amiga, parado entre centenas de pessoas que compravam, faziam planos, comentavam sobre as notícias de jornal, ou simplesmente se debruçavam sobre problemas cotidianos, amores, ódios, promoções de inverno, que eu pensei que somos todos como um esquema, e eu sabia que aquilo já haviam pensado de diversas maneiras, mas basicamente me senti no direito de pensar o que já haviam pensado antes. Somos todos um padrão que se repete, e à repetição sistemática deste padrão chamamos humanidade. E eu juro que me parecia autêntico, porque naquele momento, eu pensava o óbvio epifânico das coisas que passam mil vezes pela cabeça antes de fazerem qualquer sentido.

Querida Sandra, a minha vida anda um pouco confusa, e isso não era um problema até ontem, porque exatamente por ser confusa, eu sentia que esta vida era minha.”

Aí desisti da carta por um instante, comprei um sorvete de pistache. Eu tinha nos olhos o susto de uma revelação que já não me deixava mentir, sentei-me na calçada desconsertado. Foi quando me lembrei do robô, que o robô só merece piedade quando tem consciência de que é uma máquina, e como um robô, só tomamos consciência de nosso padrão quando algo se parte nele, quando falha o sistema, e esta fissura desorganiza a velha construção que, até que se recomponha de novo, deixa entrar luz , subjetiva o mundo exterior numa invasão da consciência do próprio sistema. Eu estava rachado, e do corte da minha cara não saía sangue. Quanto tempo eu conseguiria suportar este mundo em fissura sem sucumbir ao caos? Eu gritei: pára!, no meio de Barcelona, as pessoas passando e eu sentado na calçada como uma criança mimada, tomando meu sorvete de pistache e vendo muito claramente que eu sonhava e obedecia a uma gramática (e não raramente me rebelava contra e pela mesma gramática). Era como se nesses poucos minutos, meu corpo tivesse suspendido a velha retórica e me deixado vulnerável à invasão de uma superconsciência, que é (toda ela) um nada insuportável. Eu gritava: pára!, porque eu via os esqueletos caminhando pela rua sem carne nem alma, eu via as pessoas em raio-X, e via meu espetáculo por detrás de um palco escuro, enquanto eu interpretava a Sísifo rolando a sua pedra morro acima, fadado a sempre descer e subir. E a consciência era a minha tragédia, e eu deveria ser feliz nela, mas ao contrário, eu estava frágil porque me sentia aberto.

“Querida Sandra, eu não estou louco, prefiro pensar que não estou, mas borboletas saem da minha cabeça, emaranhadas entre os meus cabelos, como no conto do Caio que eu tanto gostava de ler.”

E porque sempre fora caprichoso, quando gritei pára! pela terceira vez, o mundo parou vibrante diante dos meus olhos, aí eu levantei da calçada, sorvete na mão, as pessoas estáticas com uma tela em pause. Eram crianças, famílias, segredos sexuais, linhas filosóficas, movimentos migratórios, dialetos, cores, todos parados no pequeno intervalo que se abre entre cada vontade e cada ação. E eu andava entre eles, e mesmo assim parados eles se repetiam. Existia algo que tremia em cada solidão, como uma freqüência de ondas que emitia cada corpo inerte, e até seus medos podiam ser catalogados. Lembrei-me do professor, que me falava que todos os medos de um homem poderiam ser reduzidos a três: o medo de morrer, o medo de fracassar e o medo de enlouquecer, e que todos os outros medos eram pequenas variações destes três. E olhando para um rapaz, parado no exato instante em que se recuava para dar um soco na vitrine de uma loja, lembrei de uma época em que "eu" (em si) ainda não era uma simples variação dos meus medos. E foi exatamente aí, lambendo os dedos de pistache, que me ocorreu a hipótese de trair os meus filósofos pela primeira vez.

"Querida Sandra, teve uma vez em um parque, aquela chuva que lavou nossa tarde..."

Aquele rapaz recuado em seu ódio era um rebelde, era assim que ele existia em si, que ele retornava a si mesmo. E em qualquer das projeções que eu fizesse dele, mesmo as mais otimistas, era ali mesmo quebrando aquela vitrine que ele deveria estar. Ele era o fractal de um universo todo coerente, que expandia o seu esquema desde o átomo até a via-láctea. Quando o garoto quebrasse aquela vitrine, não estaria simplesmente afirmando a lógica da sua natureza, estaria afirmando a lógica de todo o universo, seria ele “rebelde”, mas seria ele também “sistema”, porque a rebeldia era, em si mesma, a consciência do sistema. E eu tive medo de continuar daquele jeito, vulnerável e consciente, imaginei por um instante que eu me inundava pelas frestas abertas. E prudente, disse baixinho: play, e o tempo me obedeceu e voltou a andar. Quando o vidro da vitrine explodiu, eu já estava do outro lado da rua.

“ Querida Sandra, talvez esta carta seja a única prova de que eu verdadeiramente existi em algum tempo e algum lugar do mundo. Por favor, trate-a bem, coloque-a num vidro na parede de uma sala.”


E veio correndo a polícia, enquanto outros quatro rebeldes pichavam a frente dos prédios e trincavam o vidro dos bancos. Os pais se apressaram a esconder os olhos dos filhos, e alguns rebeldes fugiram entre as ruas estreitas da Cidade Velha, e outros foram presos e algemados. No meio de toda bagunça, enquanto os turistas alemães faziam uma cara de espanto, eu vi esta garota de costas, alheia a toda confusão, protegida na bolha sinfônica de seu i-pod. E ela tomava o mesmo sorvete que eu, tinha escolhido o mesmo sabor, e eu não pude deixar de pensar na evolução dos sabores de sorvete, que nos últimos anos estavam cada vez mais parecidos com a coisa em si, até que, quem sabe um dia, de tão parecido com o pistache, o sorvete de pistache voltaria a ser um pistache, mas o devaneio durou poucos segundos, porque era tanta gente que corria, tanta coisa que quebrava na rua, e o que eu fazia era fingir não ver o que dançava diante dos meus olhos. Não, o sorvete de pistache nunca seria um pistache, em algum momento transcenderia o pistache na vã esperança de representá-lo, e o que andava, o que sofria, o que brincava hora de destino hora de acaso não era um eu-descontente, era um sorvete de mim. E pela segunda vez, na tentativa de sobreviver, eu desejei trair os meus filósofos e afogar as suas idéias.

“Querida Sandra, está claro:eu sou o vício das circunstâncias que não me deixam fazer, eu sou a procura incessante de meios que me boicotem, se eu estou aqui agora, é porque eu me boicotei em cada segundo dos meus últimos anos.”


Sempre me parecera mais razoável viver da viuvez , que do casamento. E então eu me cercava de poréns e leis inibidoras, este era o meu esquema. Eu quase fiz coisas, quase cheguei a lugares, quase convenci gente, quase fui o filho brilhante, depois quase fui o filho rebelde, mas aquela patética dança, ali, refletida no espelho das lojas, já não me era atraente, tinha perdido toda a graça de outrora. E é claro que naquele momento eu neguei os meus pais, claro que eu os odiei eternamente pelo que fizeram comigo; claro que eu odiei também cada um dos meus amigos, quando reconheci neles a dinâmica viciada dos meus desejos dormidos. E eu quis queimar meus livros de cabeceira, quis vomitar as baratas do meu armário. E lembrei de uma frase, que eu levava num caderno da escola e que eu dizia que era a frase mais bonita do mundo, muito antes de entendê-la, simplesmente pela sonoridade que me tocava: “O importante não é o que fizeram com o homem, mas o que ele faz do que fizeram com ele”, e ali naquele instante, eu também odiei Sartre por sempre haver estado em meus cadernos na antecipação irônica de minha triste condição, porque eu não fizera coisa alguma do que fizeram comigo, meus filósofos eram tarados que se masturbavam virados para o espelho e eu, o tolo que gozava com eles.

“ Querida Sandra, depois de onze meses em Barcelona, meus tiques nervosos já são suficientemente complexos, obedecem à uma lógica geográfico-musical, como quando no verão eu voltava da praia e alargava o meu caminho só para passar na Rua Wellington, que dá para o muro do Zoológico, e ver aqueles trens do futuro deslizarem sobre um tapete de grama e a copa das árvores que cobrem com uma sombra verde toda a extensão da rua. Pois a melancolia da Rua Wellington e eu subindo devagar me faziam cantar “Because” dos Beatles. Difícil explicar, mas era só passar por ali, que de algum mundo dobrado dentro de minhas neuroses escapava os primeiros versos daquela música, because the world is round, it turns me on. E eu caminhava na Wellington, sempre deserta e verde, e o tempo parado e eu suportando aquela música mastigar o meu estômago por puro prazer”.

Desejei profundamente que aquilo acabasse, cicatrizasse de vez no meu rosto, para que eu pudesse voltar aos velhos amigos. E aí, naquela mesma noite, estaríamos eu e mais três sentados no chão de um apartamento do Born, escorados e confusos entre nossos braços e pernas, como fios de cabelo embaraçados. “Éramos filhos órfãos das mesmas circunstâncias”, eu diria, e em terra estrangeira não haveria muita gente como aquela, que emprestava madrugadas inteiras a uma solidão a quatro. Mas saindo do Portal del Angel, na avenida da Catedral, enquanto eu caminhava em direção ao Born, tive a idéia de pegar uma carona na estrada e mentir qualquer direção, sem mágoa ou rancor de ninguém, pedir: “me leva daqui” e desaparecer no mundo.

“Querida Sandra, faz mais ou menos cinco minutos que eu acordei com a cabeça escorada no vidro de um carro vermelho. Quando abri os olhos, vi a estrada se partindo em três, pedi para o motorista parar. Eu não faço a menor idéia de onde me trouxe o carro, mas estou tranqüilo. Existe um trevo na minha frente, como uma metáfora velha e insistente. Eu sinto nos braços o frio de fevereiro e a música que me vem à cabeça é Manhã de Carnaval.”


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