Thursday, January 19, 2012

O Conto Moral II

Contam que nas agruras de uma guerra sem fim, um soldado capturado teve que viver uma escolha cruel: entre três mulheres, deveria escolher a que seria executada com tiros de metralhadora na manhã seguinte. Não será escolha fácil - bradava um general raivoso. Até amanhã de manhã, você deverá decidir dentre essas pobres criaturas quem lhe é menos valiosa, e colocou três fotografias sobre a mesa. O soldado transtornado engoliu seco quando viu a primeira foto. Era a sua ex-esposa, alguém com quem em algum outro momento tinha dividido as melhores histórias, mas que a vida havia tratado de torná-la amarga e distante; a mãe de seus dois únicos filhos, uma mulher que ele havia verdadeiramente amado, mas pela qual não restava nada além de um terno respeito pelas coisas que viveram juntos. Fitando aquela foto, no espaço que separava seus olhares insistia o silêncio pesado de tudo que se calou por tanto gritar. Um passado não exatamente envergonhado, mas sem anseios de nova felicidade. O soldado então pensou nos seus filhos, na tragédia ingrata de assistir a um pai executar uma mãe. Por mais que o amor já não existisse, por mais que o passado fosse assunto acabado, ele tremeu de pavor.

A segunda fotografia era de seu novo amor, a mulher por quem ele sonhava sonhos bons e suava frio com uma doce saudade todas as vezes que ficavam mais de um dia sem se ver. Uma jovem ideia esculpida nas tardes quentes, um desenho inacabado ainda sem seus pequenos detalhes, mas que anunciava tudo de bom que se pode querer de alguém. Uma suposição, um desejo, um lugar para esquecer a solidão. Quando eles se tocavam, um pedaço de tudo parava para ver e ouvir. O mundo girava a favor deles, as coisas respeitavam seu ritmo. Até a natureza mais amoral e sem sentido assistia entusiasmada ao alvoroço daquela nova paixão. O soldado então deixou escorrer uma lágrima, lembrou-se dos longos domingos, do cheiro que esqueciam um no outro, dos planos ao pé do ouvido. O presente físico e absoluto ameaçado por uma escolha cruel.

A terceira fotografia era de uma mulher linda, mas que ele nunca havia visto na vida; um rosto sem qualquer conexão com lembrança boa ou ruim. A completa falta de razão e sentido. Mesmo que ele se enveredasse por todos os caminhos, não encontraria explicação para defendê-la ou acusá-la. Era simplesmente uma estranha. Sofrer por ela era tarefa difícil. Talvez sofresse apenas pela natureza de missão tão aterradora, mas nada muito além disso. Se tivesse mesmo que escolher entre a mãe de seus filhos, a mulher que ele amava e uma moça sem nome nem nada, estaria quase que oficialmente autorizado a executar esta última criatura: pobre caderno em branco, livro que não se escreveu.

O soldado levantou-se da cadeira aliviado. Amanhã será um dia triste - pensou - mas qualquer homem em minha posição faria o mesmo. Deixou o quartel escoltado pela guarda inimiga. Dormiria para assistir cena cruel: no paredão sujo, três mulheres desamparadas aguardando uma sentença capital. Mas alguns passos após deixar o quartel, como num conto moral, o soldado sentiu uma dor no peito, o mundo rodando, algo parecido com a morte, e caiu desfalecido.

Abriu os olhos horas depois para encontrar uma jovem segurando a sua mão: Pensei que você fosse morrer. Era a moça da terceira foto, linda como quem só existe em histórias de mentira. Você é um homem forte, quando te encontrei parecia morto. Que bom que te trouxe de volta - disse a médica na enfermaria de um quartel insólito.

O soldado entendia pela primeira vez a sua tragédia. Traços delicados rascunhavam em um caderno já não mais em branco. A primeira mulher guardava a sua história, o amor por seus filhos e um bocado das coisas que o haviam feito o que era hoje. A segunda mulher guardava a sua paixão, seu desejo de eternidade e a expectativa de que algum dia se tornasse ela mesma parte fundamental de sua história; e a terceira mulher guardava a sua vida, era a força anônima e sem pretensão que o fazia vislumbrar além da névoa pesada o futuro.

No dia seguinte, o soldado foi então levado para sentenciar uma daquelas três figuras no paredão de fuzilamento. O general esbravejava: Escolha dentre essas três mulheres quem merece menos viver. Da carroceria de um caminhão desceu primeiro a jovem senhora que ele havia amado na juventude. Uma mulher endurecida com os anos, meio pálida, meio feia - tão diferente de quando se prometeram todas aquelas coisas lindas, mas dona irrevogável de seu passado. Sem dúvida, era a pessoa no mundo que mais o conhecia em minúcias. Acorrentada atrás dela, desceu a sua jovem paixão, por quem ele esperava ansioso por cada novo sorriso e agora ali chorava inconsolável por seu destino. Não tinham vivido muito tempo juntos é verdade, mas no pouco tempo que dividiram toda a felicidade parecia conspirar. Sentiu apertar seu peito, quis dizer alguma coisa para que ela lesse em seus lábios, quando então desceu a terceira mulher, parecia calma, certa de seu destino. Não o encarou uma única vez, apenas caminhou descalça até o paredão e aguardou intacta por sua sentença final.

O general improvável pela última vez perguntou: Quem deve ser executada, a mãe de seus filhos, a mulher que você ama ou a mulher que salvou a sua vida? E o soldado não parecia ter dúvidas. Olhou uma última vez nos olhos de cada uma das três mulheres e disse sem hesitar: Mate a mulher que eu amo.

1 comment:

Bruno Höera said...

Acredito que já falei o quanto gosto dos seus textos. Todas as vezes me surpreendo.