Friday, September 10, 2010

Dois de mim

Eu queria deixar coisa escrita para lacrar e guardar no tempo, como um lembrete delicado para depois. E quando eu fosse mais velho viria a encontrar, completamente distraído, esse relicário, igual àqueles que os astronautas mandam para o espaço para os homens do futuro saberem exatamente como viviam os seus ancestrais. Guardar no tempo um pedaço desta noite larga – eu, ancestral de mim.

Tentaria escrever as palavras certas para embalar de doçura os meus anos velhos. A melancolia que é doce agora, como ainda é doce o sonho de me perder no mundo e encontrar apenas os bons encontros: a língua que roça o pé do ouvido, a solidão que não abandona nas horas imensas dos aeroportos e que me faz sonhar com todos os cais e todas as luzes acesas na madrugada.

Os dois homens se sentariam um de frente para o outro, um deles abriria um envelope antigo, o outro, ainda jovem, olharia fundo nos olhos do abismo, e notariam como eram frágeis os seus primeiros planos (asinhas de borboleta), e como é lindo não ter sabido quase nada para ter descoberto por acaso todas as coisas novas e todas as coisas que mudam muito pouco.

Eu queria guardar os segredos desta noite larga numa cápsula do tempo, e a decisão que eu tomasse agora seria a curva da estrada para onde supõe-se o resto da minha vida - eu, esta garrafa vazia, o eco na sala do apartamento e todas as almas roubadas.

1 comment:

Walter Estella - Intérprete said...

Gostei demais deste texto. É como se me visse nele. Parabéns! Vá em frente com aquela idéia de publicar!