Thursday, February 14, 2008

Eu te prometo o meu carnaval

Esther se entendeu no reflexo que fazia no vidro da janela. O mau tempo facilitava que as coisas se mantivessem dentro de casa. Naquela hora seria insuportável se escolhesse outra música, repetiu o samba, disse que o vinho, que tinha comprado na Toscana, havia guardado para ocasião especial. E seguiu num discurso sóbrio, maquiando de azul Ipanema lá fora, fingindo não ver que chovia sobre os blocos de carnaval.

- Eu já cansei de entender. E eu sei que definitivamente não existe mais nada que eu possa fazer ou falar, enfim. Essa é das poucas coisas que não se convence ninguém. E é, afinal, sempre mais vulgar quem agoniza antes de morrer. Prefiro morte civilizada. Eu não quebrei nenhum prato, você há de concordar. Eu não tenho raiva de você, sei que para essas coisas não existe culpa. Nós não vamos nos confundir agora com as amarguras dos pobres mortais. Seremos altivos, racionais.

E porque era civilizada, falava baixo; porque não compartilhava das amarguras dos pobres mortais, não se desesperava. Esther comparou a relação a um livro bom que se acaba, citou estudos de Ortega y Gasset, concordou que haviam tentado de tudo, que generosamente haviam se arriscado em muitas possibilidades, mas que era certo que já não existia nada entre eles, e que enfim não poderiam viver mais juntos.

Gabriel ouvia tudo sentado em sua velha poltrona, ou nem sei se ouvia, simplesmente olhava para aquela mulher de costas, as gotas escorrendo no vidro à sua frente, um céu devastado em tons de cinza que não penetravam o quarto, porque o quarto estava blindado com uma paz exausta das últimas semanas, dava quase para ouvir as paredes ofegantes. Esther nem se incomodava em perceber Gabriel, continuava intacta, como num transe.

- Não se preocupe comigo, Gabriel, eu vou levar o mínimo, alguns retratos, as minhas coisinhas. Você me conhece bem, não será um escândalo a minha mis en scene. Depois eu volto para buscar o que for importante. Eu respeito a sua escolha. Eu não te contei, mas eu fiz questão de conhecê-la, me pareceu uma mulher bem resolvida. Eu a vi descendo de seu carro no Leblon, carregava uns livros no braço, se eu não me engano lia Borges, era elegante, sem grandes cacoetes de mulher solteira.

Gabriel baixou o braço e deixou a taça de vinho no chão, mas o fez sem barulho, sem atrapalhar o caminho sem pedras por onde passeava Esther. E ela não se traiu, não caiu na armadilha fácil da nostalgia. De onde reparava Gabriel, ela era a deusa irrepreensível da polidez, a consciência absoluta do ritmo e da natureza das coisas, a anti-Hera. Seu vestido azul quase tocava o chão, seu cabelo longo cobria suas costas magras, a mão direita delicadamente segurava uma taça de vinho bom.

- Eu não me arrependo de nós, Gabriel. Foi Camus quem disse que “não existe amor generoso senão aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular”? Pois é lindo isso, passageiro e singular como tudo que vale a pena. Se eu pudesse desfazer qualquer das coisas que fiz, talvez a única, ou quem sabe nem esta, teria sido dez minutos atrás ter envenenado a sua taça de vinho. Eu ainda acho que você deveria descer uma última vez e curtir esse carnaval. Eu vou. Eu te prometo o meu carnaval.

2 comments:

PaolaBia said...

Conseguir transformar um momento em mágia... Só podia ser obra do melhor contador de histórias que eu conheço!
É uma delícia esse seu cotidiano tão insólito, tão Dali!
Bom demais poder ver o mundo pelos seus olhos.
Nunca deixe de encantar assim, tá!
Beijos

Anonymous said...

aloha! finally :)
o samba agradece