Wednesday, September 13, 2006

Em trânsito

Uma voz de declives, roucas voltas sinuosas me avisa que, por problemas diversos, os passageiros em trânsito para o Rio de Janeiro terão que esperar mais três horas em solo - três horas e eu devo viver aqui para sempre. Até pensei em ligar para alguém da velha cidade, dizer: oi, tudo bem, faz uns bons anos que a gente não se encontra, eu estou em Congonhas de molho, talvez você quisesse passar aqui e tomar um café comigo, mas fiquei constrangido com a petulância, já não se faz sexo em banheiros de aeroportos. Seria apenas para passar o tempo, eu não fingiria melhores intenções, depois do sexo, tomaríamos um café, daí eu deixaria que surgisse um daqueles assuntos inacabados - é para isso que existem as pessoas, elas passam o tempo, pedem café, discutem as coisas durante horas, nada profundas, porque coisas profundas são rápidas de se dizer e não tomam as três horas que eu preciso que tomem. Eu sei que não há nada que desculpe meu abandono, eu diria bem canastrão, pingando gotas de aspartame e remorso, mas faz tanto tempo que eu fui embora, que já existe algo de pálido nas velhas lembranças, então eu colocaria um cigarro na boca, demoraria um tempo com ele ali apagado, depois me arrependeria e o devolveria à caixa, foi quando eu pensei em você, lembrei-me de como era bom passar as tardes contigo.


O que o senhor deseja? Café com leite, por favor. Eu cruzo as pernas, a manchete do jornal tem um erro ortográfico pungente, sapatos velhos, o dia todo cinza e ainda faltam duas horas e quarenta e cinco minutos para o avião partir. Em algum momento até o final deste dia, irei cogitar se o amor não é a maior das invenções da indústria farmacêutica, por enquanto, me calo antes de alguma bobagem e fico assistindo ora desiludido, ora extremamente apaixonado a tudo que se movimenta, se transforma e se promete. Eu transito por entre planos, por entre hipóteses de mim mesmo, por corpos e malas feitas para muitos dias de viagem. E sei que a natureza é em si amoral, meus olhos é que são capciosos e olham para ela cheios de sentido. As pessoas passam com pressa de nada, fingem a pressa que deve ter as suas vidas devidamente ocupadas. Celulares impertinentes me perturbam, roupas bem cortadas me dão náusea, eu transito por entre horas de espera, por entre homens cansados, alguns moribundos na fila, fusos horários malditos, crianças chorando, leite, colo, a mulher que perdeu a viagem odeia todos os relógios do mundo. Daí me levanto para ir ao banheiro, preciso mijar urgentemente, mas esbarro neste sujeito desajeitado que corre e sente tanta saudade, que já nem sabe o nome de quem lhe espera, poderá ser qualquer um, contando que exista alguém, poderá ser até eu.


Vem então a cena clichê, eu no espelho do banheiro olhando para minha própria imagem. De repente um surto existencial, talvez eu chore, talvez quebre o espelho com um murro e deixe sangrar a mão. Nada é tão banal como essa figura que me olha, nada é tão coadjuvante e corriqueiro. Existe certa dignidade em ser feio, certa condescendência em ser belo, mas assim normal é tão morno e equilibrado, é tão classe média, como alguém que atravessa a rua e hesita no meio, daí os carros passam, abre e fecha o sinal mil vezes e não se decide entre o voltar ou ir em frente, você parece tanto com um amigo meu, nós já estudamos juntos?, você me lembra um cara da minha cidade, ontem eu pensei ter te visto na fila do cinema. Meus traumas são tão usuais que cabem nos livros, meus medos foram todos catalogados, minha altura é mediana, eu não sou magro nem gordo, nem completamente sóbrio, nem pateticamente embriagado, vivo hoje exilado no sofá da sala de um parente próximo, porque gosto de “não ter raízes”, mas minto constantemente, se algum sujeito desocupado averiguasse todos os meus assuntos, veria que na melhor das hipóteses, eu minto em oitenta por cento dos casos. Eu nunca fui mais que passageiro. Se eu tivesse uma analista, queria que se chamasse Camila.


Ao meu lado, um rapaz faz a barba. É deselegante fazer a barba no banheiro do aeroporto, e quando vejo sua nécessaire semi-aberta com um medicamento tarja preta lá dentro, quero lhe perguntar: que remédio você toma?, mas ele me antecipa (talvez para me constranger, talvez para economizar): Aropax. A substância é Paroxitina, ela tem a mesma eficiência da Fluoxetina, mas sem os efeitos indesejáveis. O que ele quis dizer foi: “eu sou triste, mas não estou broxa”. Eu sorrio com o canto dos olhos e saio do banheiro pensando que deve haver muita gente estranha neste mundo. Se o meu analista fosse homem, queria que se chamasse Flávio. Flávio seria um homem sério, quarenta e poucos anos, divorciado e amigo da ex-esposa. Ia me dizer lá pelas tantas: na quarta-feira passada você me falou de um tal personagem (mas o que Flávio planeja fazer é desconstruir o tal personagem, o mesmo que planejaria Camila em sua mesma posição). Eu responderia com a voz de veludo vermelho que aprendi a fazer para dias assim: o antigo dono deste corpo era chato, gordo e não fazia sexo. Ele morreu trinta quilos atrás.

Duas horas não são menor eternidade do que três. Eu peço um outro café. Haverá no mundo quem possa me salvar sem a cafonice dos cavalos brancos, alguém que venha me buscar e me arraste pelos cabelos cidade adentro, me afaste deste lugar que perdeu o rumo desde o tempo em que éramos bons selvagens... o seu café, senhor. Eu agradeço, daí percebo que a garçonete me olha diferente, não vai embora, ou quer gorjeta ou está flertando comigo, ela tem um sorriso sujo do batom vermelho e um lenço amarrado no pescoço, porque sabe-se que, em aeroportos, lenços amarrados no pescoço são sinal de alta civilidade. Mas aí percebo que ela me olha diferente, porque deixou respingar o café quente na minha roupa branca, perdão, senhor, eu posso trazer um pano úmido para lhe limpar. Eu digo: roupa suja para gente suja, e solto um sorriso com a triste lembrança que esta frase me traz. Certa vez, no ano em que eu fui embora, me levaram a uma festa numa fábrica abandonada nas cercanias de Barcelona, e lá eu conheci toda classe de gente suja. Foi a última vez que me senti completamente em casa. Eles pintavam seus rostos de mágoas e encenavam a tragédia que deve ser nosso tempo. Quanto mais forte era o cheiro daquela gente, mais bonitos, tristes e trágicos. Pichavam as paredes com frases fáceis e não queriam dizer nada muito além do que já não diziam aquelas frases. A garçonete desculpa-se mais uma vez, pede licença e vai embora.

Eu olho para o fundo da xícara, o borrão do café revela vestígios que desenham a minha sorte. Deixo uns trocados sob o pires e vou andando até o vidro gigante, de onde se vê os aviões sendo lavados por uma chuva que não cessa há horas. Deve haver uma dimensão paralela onde coexistem os aeroportos, os hospitais e os dias de luto. As coisas não valem aqui o que valem lá fora, não respeitam a mesma lógica cá e lá. Estamos suspensos, equilibrados na vertigem de uma corda-bamba. Tudo prestes a acontecer, o relógio correndo as horas para trás, e eu trancado no parêntesis desta frase (nem tão cínico e triste, nem tão romântico e tolo).

Camila toca o meu ombro. Eu não preciso me virar para saber que é ela, a gente precisa conversar, diz com seu sotaque carioca e seu pigarro de enfisema pulmonar. Se Camila souber administrar o tempo, fará bom uso da hora e meia que me resta. Eu nunca vi o seu rosto, também nunca vi o de Flávio, mas os conheço muito bem. Camila gosta de fumar, bate as unhas no braço da poltrona quando está nervosa e adora Magritte. Engraçado eu me lembrar disso agora, porque se alguém me vir de costas aqui parado vendo a chuva cair sobre os homens e os telhados nessa janela gigante do aeroporto, e as janelas já são tantas: janelas de aviões partindo, janelas com vasos com flores, janelas imunológicas terríveis, se alguém me notar agora, verá um quadro imenso e vivo de Magritte.

9 comments:

Anonymous said...

Tantos caminos posibles, tantos pretextos para seguir hablando. Pero este cuento ya llega a su fin. En su economía, con el riesgo incluso de ser críptico, será corto, me lo prometo

Este es un texto tuyo diferente. Em trânsito, paréceme incluso pertinente como título.

¿Sabes porqué te lo digo? Porque hasta dónde mis ojos creen poder ver, hay un movimiento.
Es quizás, de todos tus tristes el más alegre, porque hay un movimiento.
No importa que sea el más delicado del mundo, hay afirmación en el movimiento.

Habría que seguir, llegado hasta aquí, para que estas tres horas no se congelen en su constancia, tres horas para que decidas que no debes vivir aquí para siempre.
El martes he partido yo, y te he dicho adiós.


Para o menino do aeroporto:

Hay dos hombres frente al espejo en el baño del aeropuerto, ambos piensan conversar, pero no saben –aún- que sólo hablan.
Hay todo un espejismo adyacente al reflejo de cada uno de ellos.
Uno habla porque piensa haber visto otro, aunque en frente o al lado sólo ve uno.
Otro habla por misericordia y porque en frente se ve, aunque no sabe que también al lado de lo que mira está. Sólo son dos tiempos en un mismo espacio intercambiable.
Pero ellos no se ven, porque se miran fijamente atónitos a si mismos. Desprovistos aún están de cualquier imagen ajena.
Frente a frente sólo frente al espejo y sólo frente al espejo miradas adyacentes. Siempre melancolía, nunca saudades.

Ninguno se ha dado con la existencia del otro en aquél baño, uno se fue hora después, otro esperaría supuestamente un par de horas más para partir.

“En tu rostro y en tus ojos siempre se ve tu secreto. Pierde el rostro”

Si lo miras como el que escribío ontém foi sempre assim, es porque aún hechizado estás en el baño de aquél aeropuerto y no te has dado cuenta que al lado ya no queda nada más que el espejo de tus tristezas.
¿Si me pudiera imaginar? Por suerte no… De todos modos deseos sinceros de que hayas tenido aquél viaje.

Anonymous said...

Lindo texto... como sempre, no limite da razão e do devaneio... um nefelibata contemporâneo, errante e decidido! gosto de todos os paradoxos que em ti residem meu amigo poeta! incluiria na lista de locais com universos paralelos, os grandes supermercados das capitais internacionais... eles sempre me lembram o "não lugar"... o shopping center, saca? tem sempre um iogurte, a sessão de bebidas, de salgadinhos... mão com filhos chorando, peruas, descolados, (...)saudades de ti... vem logo pra terra da garoa...

Anonymous said...

Gostei muito do texto, a princípio lia como sequências de fotografias, mas no fim esclareceu que eram quadros.

Gabriel said...

lindo, lindo, lindo.

Anonymous said...

...

Anonymous said...

Eu gosto do que você escreve. Todos os meses há um bom tempo venho aqui e nunca me decepcionei.

Anonymous said...

eu penso em beijos, blues e poesia

Anonymous said...

Cool! muito bom texto... so que as pessoas ainda fazem sexo no banheiro dos aeroportos...

Sun said...

mto bonito seu texto!