Monday, November 28, 2005

No tempo em que eu fui embora

Crônica de um jovem desarmado
(escrita um dia após o referendo sobre o desarmamento no Brasil)


Por Roberto Vitorino, de Barcelona (24/10/2005)

Eu me lembro que quando eu aterrisei em Madrid, há sete meses exatamente, havia um bocado de gente se apertando na fila do desembarque. Gente simples, de contar o dinheiro com fome e usar terno cinza para andar de avião. E eu já meio que sabia o que esperava aquela gente: tardes inteiras para lembrar com saudade do tempo em que se fazia churrasco, da roda de samba, do mar, daquele mar que é muito mais mar. E o moleque com olhos assustados de não saber falar seu nome, quando trabalhasse no porto rasgando barriga de peixe em Barcelona, sentiria um aperto no peito toda vez que encontrasse nesse mar, que é menos mar, toda a orfandade e o vazio escuro do Mediterrâneo, sem rosas brancas nem oferendas para Iemanjá. E como em música de pescador, o moleque fecharia os olhos para gozar a saudade, porque no fundo sabia que era saudade do que estava mais dentro dele do que em qualquer outro lugar.

Depois de sete meses aqui, o Brasil vai se tornando naturalmente um holograma, um punhado de notícias na internet, uma caipirinha no domingo, feijão preto, decepção. Eu vi o governo se desmanchar na própria vaidade, na embriaguez quase clássica pelo poder. E tudo eu li pelos jornais ou por ligar à meia-noite para a minha mãe e perguntar: “Mas o que está acontecendo?” com aquela arrogância covarde que só têm os que já foram embora . E eu não podia acreditar que era tudo areia, que um vento morno tinha varrido as sereias e os castelos de Copacabana; e quando eu colecionava uns santinhos vermelhos no quintal da minha avó lá em mil novecentos e tantos, para depois distribuir nas ruas como criança que imita os pais, quando eu sonhava que eleição era igual a partida de futebol e, eu queria ganhar, mas sempre perdia, porque como no esporte eu nunca fui muito bom, o que eu queria mesmo era nunca ter que escrever esta carta hoje.

O Brasil é um amador, uma criança mimada cheia de arestas e dias felizes, um filhote mal criado pela ditadura e pelos tempos difíceis, sem manejo com a liberdade que lhe deram; e a liberdade fanática é sempre um perigo, a democracia histérica é sempre um perigo. O Brasil não é a América, mas é o projeto torto de uma América selvagem, de um safari em si mesmo, o boteco em frente ao parque de diversões aberto para assuntos de existência e melancolia. E a filosofia de botequim fez a história recente desse país, enquanto um rebanho se embebedava e se afogava no copo raso das suas teorias políticas mais surpreendentes. Quando eu liguei ontem para o Brasil, me atendeu um homem bêbado falando alto com outros homens bêbados sobre a complexa diferença entre o "Sim" e o "Não". E finalmente o Brasil havia atingido o mais emblemático de seus exercícios políticos recentes, debater sobre o abstrato absoluto com a mesma ferocidade e consistência de quando discutem quem é melhor: o verde ou o vermelho nos campos de futebol.

Quando mais tarde, os bem-intencionados procurarem no voto do povo uma "inteligência de rebanho", encontrarão travestido de insatisfção social uma "mensagem". E eles escreverão nos livros que o povo brasileiro, pobre, coitado e insatisfeito tinha uma mensagem para dar, que votar Não era votar contra a mentira e a hipocrisia de um governo insuficiente e corrupto, que o direito de defender a vida e a propriedade é fundamental e anterior a qualquer referendo, que é quase biológico, quase um instinto humano, quase, quase que me engana.

Mas o rebanho é sempre burro, não interessa a inquestionável força que tenha, todo rebanho é pateticamente burro. Exatamente as mesmas pessoas, sob campanhas políticas distintas, seriam capazes de votar Sim ou Não, tanto que o cardume de peixes preguiçosos transitou por águas frias e mornas num período de poucas semanas, e entre a babaquice acéfala dos galãs de televisão (com toda aquela mentira sobre a “paz”, que não existe) e a campanha paranóica e convincente importada das fazendas do Texas, optou-se pelo cheiro de bosta nos calcanhares.

O referendo nem deveria ter existido, porque a questão era ultrapassada no Brasil e na maioria dos países desenvolvidos (excetuando claro os Estados Unidos), 80% das pessoas estavam de acordo que portar uma arma estava fora de cogitação segundo todas as pesquisas nas ruas, quando a pergunta era ainda virgem de tempero e espetáculo. Mas o lobby de um congresso de fazendeiros (competentes pastores de rebanho) , a idéia “bacana” de praticar mais uma vez a democracia, naquela que é a sua "expressão máxima": o voto, o dinheiro que movimentaria as campanhas milionárias (muito dinheiro), e um país já com abstinência de “cidadania”, com vontade de fingir de novo que podia mudar, empurraram com a barriga, ligaram os televisores, pregaram cartazes nas ruas e, claro, foram para o bar, beberam, beberam, pediram uma saideira e depois beberam mais cinco até perderem de vez o rumo de casa.

Quando eu liguei para Goiânia um dia depois, a vida já carregava o peso imenso de um dia qualquer. E algumas tias, que nunca na vida seguraram um revólver, tomavam um café com pão de queijo na sala de casa e sentiam-se mais protegidas, porque agora os ladrões malvados saberiam que elas, mulheres armadas e perigosas, poderiam matar. No dia seguinte, nesse país que se castiga, como um fiel que se ajoelha em grãos de milho, que chicoteia as próprias chagas, a vida tinha a estranha sensação de banal. O povo pegava o mesmo trem na velha estação, e as coisas tinham mudado quase nada. Entre tira-gostos e conversas de bar, ainda eram racistas (embora carnavalescos), sexistas (embora apaixonados), homofóbicos (embora tolerantes), moralistas (embora felizes). E o paradoxo, escreveria o bem intencionado, era a graça de um povo que só se entende assim. Então escuta esse samba e chama a mulata para dançar.

Aqui hoje na Espanha, pelos jornais, as matérias falavam de uma eleição de caráter duvidoso, com um sistema de escolha contra-intuitivo em que o sim era o 2 e o não era o 1, de uma multidão ignorante que se confundia com a falta de clareza da pergunta nas urnas. Os editoriais europeus estavam cheios de compaixão com a gente, como se dissessem: “eles votaram sem querer, pobres coitados, eles não sabiam o que estavam fazendo”. Pois não somos pobres coitados, somos o sincretismo do Não na vida cotidiana, somos todos o coletivo do Não, o vício do Não, a inteligência do Não. Somos Não quando acordamos, quando sentimos a vazia esperança no nosso samba. E toda criança quando olha para o céu e vê uma bala perdida deve fazer um pedido para o Papai Noel.

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