Monday, November 28, 2005

En la ciudad




(Escrito originalmente em 18/10/2005)

Meu pai sempre diz que, se tudo der errado comigo, eu ainda poderei voltar para Goiânia para abrir o "Bar Celona", como uma última tentativa de sucesso.


Pois meu jejum de relatos se acaba e se explica num emaranhado de meses confusos (ou extremamente pacíficos). E quando Carrie Bradshaw é a filósofa moderna com maior credibilidade eu me pergunto:


Por que é tão estranho sentir-se em paz?





Barcelona não é a minha Manhattan. Definitivamente não seria em Barcelona que eu viveria os meus sonhos mais sujos, mas fato é que eu, menino de "frenesi e de caos", encontrei pelos cantos a mais humana e anti-natural das invenções: a Paz.

A Paz é um eterno domingo de tarde, é o sol se pondo num alaranjado tão quente que toca a grama verde e deixa família, cachorro e crianças mais parecidos com o céu. A Paz é um não querer saber, é um não olhar para os lados, não querer olhar; a Paz é a mentira mais bem contada em tempos de guerra. É o violino, o piquenique, o jardim e o amor sem ciúme. E se num filme, é o segundo que antecede a morte, na Europa, a Paz é um lago perene de tranquilidade e linhas retas .

Mas, Come on, Baby, quando mamãe saía para trabalhar de manhã, me deixava um saquinho de biscoitos e um filme americano para me cuidar. Eu não acredito na Paz, conheço a fragilidade das suas intenções. Nada pode continuar assim por tanto tempo, só com o canto de um pássaro rasgando a manhã, só com o riso contido de uma menina loira e virgem. A Paz é o meu suspense diário, meu thriller psicológico sem efeitos especiais.

Pois quando o outono chega na Europa, as folhas não caem por poesia, caem por cansaço. O verão é uma dura performance para eles. Eu conheci gente da minha idade, que de tantos invernos, dava pena a paz nos seus olhos. Dizem por aqui que a felicidade é tropical, mas não se trata da minha piedade de sangue quente. Essa tristeza que anuncia as novas estações, que estremece de pudor e medo as mães escandinavas, também é um comboio de negros para o Marrocos saindo a cada dia pela manhã. É que para manter a Paz é preciso lavar as ruas. A Paz aqui é inseticida, antisséptico bucal, lixo dividido em cores e formas para depois reciclar e colocar de volta nas prateleiras - tudo extremamente organizado. E a ordem tem a crueldade sutil dos homens bons.

Nos túneis subterrâneos que levam aos metrôs, campanhas oficiais desistimulam a direção alcoolizada. No cartaz: uma cadeira de rodas e um corredor branco com uma frase vulgar: “O álcool te leva para bem longe”, diz e continua: “Você tem o que você gosta”. E eu gosto de parar o carro no alto da montanha, bêbado, para ver esse lago imenso, frio e parado; depois fantasiar um monstro submerso nele, que sobrevive a gerações calado. Não se move e não perturba as águas. E eu sou também esse lago e sou também esse monstro. Alguém acende uma maconha, alguém diz que embora Mozart seja a plenitude da música, a matemática de Bach é mais impressionante. Alguém ri, mas prefere Miles Davis.

Eu tenho saudade do caos. Mas fui ligeiramente cooptado pela vida em paz, pela agradável mentira de dormir de portas aberta, já que o mundo lá fora está longe ou sem visto de entrada. Meu exílio consentido é viagem alucinante em mim mesmo, mas não tem o charme dos exílios dos velhos poetas. Quando eu alimento os patos no Parque de La Ciutadela, vejo a Senhora Dalloway conversar sozinha naquela doce agonia em que vivem os sóbrios. É desses monólogos que eu faço minha guerra. E  minha guerra é contra a Paz, diferente de todas as outras, eu imagino.

Uma mulher dorme sobre o tapete verde, repousa sua cabeça na raíz robusta de uma árvore já quase sem folhas. Um menino, seu filho supõe-se daqui, pedala rápido um velocípede vermelho. A flores têm a cor que deveríam ter, como se antes de crescerem tivessem sido delicadamente retocadas por um artista de tempo vago. E o velocípede segue para longe até se perder de vista. E eu sempre espero o grito, todo dia, quando desço ao parque para ler sob alguma sombra fria, eu espero o grito de uma mãe desesperada, a cara suja de um bandido, mas não tarda e o menininho volta, boca suja de chocolate, faz uma careta para mim. Eu penso então em todas as coisas em que se deve pensar, que o mundo é injusto, porque aquela tranquilidade é tão diferente do tempo em que subiram as grades da casa da minha avó para que fosse mais seguro para a gente brincar.

A Espanha também subiu o muro para seis metros na linha da fronteira para que os pretos de Marrocos não venham incomodar mais, eu me consolo. E o limite entre o desenho animado e o filme de terror é tênue e frágil. Uma borboleta dança e pousa sobre capa do meu livro, Alice sai desajeitada de um buraco logo ao lado do meu. E eu olho para o céu, solto um sorriso e me espreguiço. Já está tarde, deixo o parque em passos lentos. Vou atravesar a rua. Ao meu lado, uma van parada e o barulho de um relógio suspeito. O sinal abre para mim. Um carro cruza violentamente o sinal vermelho, podia ter me matado, eu penso. Passou o motorista olhando - contato visual de dois segundos, parecia bastante perigoso. Ele tinha a barba mal feita e uma cicatriz no lado esquerdo do rosto. O carro segue, eu cruzo a faixa. Vou andando assim, ainda em passos lentos. Engraçado agora que vejo a borboleta em meu ombro, é azul, parece gostar de mim. Eu brinco com ela até meia estrada, depois ela voa, sei lá para onde. É outono agora. Traz um vento úmido para Barcelona. Vai chover.

1 comment:

Anonymous said...

Por favor! Eu choro bérro e imploro, em nome de nossos filhos netos, futuros livros ou jornais...
Não! Nunca! Não nunca deixe o mundo tampar a boca da sua alma. Nunca endurecer o seu coração independente das intempéries características àqueles corações expostos como o seu. Por favor, nunca, nao deixe nunca! Eu choro bérro e imploro. Não, nunca.