Thursday, May 27, 2010

Quando Saturno Voltar

Para todas as pessoas que não cabiam...

Não sei se o vi, ou se era o vento forte agitando os galhos perto do rio. Se era ele mesmo, estava de costas, ajoelhado, como se rezasse ou buscasse com as mãos água para beber. Nunca terei certeza. De longe, era um fantasma, um perfume. Os que o conheceram de perto dizem que era tão fraco e tão feio, que mal se podia encará-lo por muito tempo, porque dava agonia vê-lo viver. Como se notá-lo fosse forte o bastante, então evitavam os olhos para protegê-lo do constrangimento da própria existência. Talvez por isso, ele tenha vivido sempre muito só, mas eu duvido das boas intenções dos que o evitavam. A verdade é que tinham medo de que por algum descuido, aquele menino franzino revelasse o que se anunciava em cada olhar. É que, desde muito criança, o pobrezinho carregava a graça (ou a sina) de ver o futuro anunciado nos olhos de quem o encarasse fixamente. Ele dizia que naufragado em nosso olhar, desenhado feito tatuagem, estava o céu do dia em que nascemos, e a ele, bastavam alguns segundos para que o destino emergisse como um velho segredo guardado.

Bernardo Alejo Carreras nasceu em um outono de 1981 e morou por 17 anos na mesma casa amarela à beira do barranco, onde o sol morre mais de perto. Depois que seus pais faleceram, ele continuou ali sozinho e, enquanto viveu na cidade, Bernardo raramente foi visto caminhando fora de casa; ninguém jamais teve com ele qualquer intimidade. Ainda assim, não existe dia em que alguém não conte a sua história, saudoso pela única curva de uma estrada quase sempre reta. É que nada jamais aconteceu antes de Bernardo chegar ou depois de Bernardo partir. Nem o outono virou inverno outra vez, nem a chuva voltou a chover. A vida tornou-se a encenação diária de uma derradeira lembrança, dos dias insólitos e das coisas estranhas que antecederam a sua partida.

Naqueles dias, lembro-me de olhar pela janela e ver no céu um azul eterno e sem compaixão. Nem era final de janeiro e o jornal noticiava o quarto garoto morto encontrado nas valas perto da estrada. Morriam asfixiados sem arranhão ou marcas de luta. Não existia nada que ligava os garotos a um único suspeito e não havia provas de que se conheciam entre eles. Moravam em cantos extremos da cidade, mal eram vistos pela vizinhança e a única coisa em comum, mas isso parecia abstrato demais para supor qualquer ligação, é que os quatro meninos guardavam o desejo antigo de um dia irem embora daqui. Mas que espécie de assassino mataria pelo sonho de alguém?

Andava pela cidade, também por aqueles dias, um forasteiro. E como tudo que é de longe e de fora, não demorou para que o povo o tomasse como principal suspeito dos desarranjos do lugar. Ele era um homem silencioso, de idade e sotaque incertos, branco queimado de sol, com um chapéu que lhe protegia o rosto e lhe dava certa dignidade estrangeira. Seu nome até hoje não se sabe. Solitário, mas bastante elegante em sua solidão, como se gritasse sem ter que dizer que se existe uma única verdade na vida - e as outras todas seriam variações passageiras – é que somos irremediavelmente sós.

As autoridades da cidade apressaram-se em um plano para agarrar o suspeito e impedi-lo de mais um ataque. Mas não tinham prova alguma nem estavam exatamente certos da lógica que emoldurava as suas vítimas. Especulavam sobre a vulnerabilidade dos “meninos delicados”. Chegaram a aconselhar as famílias que tivessem dentre os seus filhos um jovem frágil que porventura mencionara o desejo de ir embora recentemente, que o mantivessem dentro de casa, sob o risco de ser raptado por um estranho, asfixiado até a morte e desovado em uma vala à beira da estrada. Foi quando meus pais trancaram a porta e me proibiram de sair do quarto até que resolvessem os crimes lá fora.

Da janela, o mundo era uma rua estreita de terra, às vezes crianças jogando bola, às vezes um homem fumando, um moço entregando a namorada antes das onze. Um deserto para nascer e morrer, as árvores tortas como bailarinas que perderam a graça, as casinhas coloridas no esforço de fazerem rir uma cidade triste. Quando pequeno, eu pensei que se fosse possível fugir sem que as pessoas notassem, e quando notassem, já fosse tarde e não sofressem, porque diriam coisas do tipo: “ele não nasceu para viver aqui” , ou “eu sempre vi no jeito daquele menino uma coisa estranha, como se ele viesse de outro lugar”, enfim, se fosse possível ir embora sem que a casa fosse devastada, eu teria partido, mas não fui.

Lá perto do barranco, dava para ver o sobrado amarelo de onde Bernardo Carreras nunca saía. E me lembro de pensar como ele devia cobrir os espelhos com grandes lençóis brancos para evitar qualquer encontro desagradável com seus olhos. Porque se o povo estava certo, Bernardo ao se ver, enxergaria a vida inteira até a sua morte, e a vida guardada é uma condenação.

Foi numa noite sem lua, quando os homens bons já dormiam e estava escuro demais para se ter certeza de qualquer coisa, que o forasteiro cruzou a rua em direção à casa de Bernardo. Confesso que vi um vulto passar, mas os detalhes que narro aqui são de colecionar pelos anos. Naquela noite ventava muito. Contam que o estrangeiro bateu em sua porta três vezes, mas o menino não demorou em abrir, como se o esperasse a vida inteira. E então, quando Bernardo olhou fundo nos olhos do visitante, ele viu somente chuva. E a chuva, conhecíamos dos livros, mas não de temporal. E era tanta água, que não se pôde ver mais nada.

Bernardo teve medo. O homem por duas horas falou do mundo, dos lugares que tinha visto, das possibilidades que se desdobravam além da estrada. Disse que nem tudo era igual. Se o verão é um sonho, o inverno é a consciência das coisas. E as coisas todas mudam, em algum outro lugar elas se permitiam às suas diferenças, se revelavam particulares. E se Bernardo teve medo, é porque sabia desde sempre a escolha que faria. Depois de falar por horas, o estranho, que até hoje não se sabe o nome, lhe perguntou:“Você quer que eu te leve daqui?”

Quando a primeira gota d’água tocou a terra virgem, corremos para ver a chuva e gritávamos palavras que não se deve dizer - tão obscena a nossa alegria. A vida de Bernardo, que morava no final da rua, apenas supúnhamos para além do temporal, mas naquela hora não preocupávamos com mais nada. Alguns rezavam com pavor do que mandava o céu, alguns corriam para fora de suas casas, alguns tiravam as roupas e dançavam feito crianças loucas. E chovia apaixonadamente. Demorou mais de uma semana para que passasse a ressaca e voltássemos à vida de antes. Mas nem Bernardo nem o forasteiro jamais foram vistos de novo. No horizonte aberto, a casa amarela e vazia.

Por trás dos olhos de chuva existia o mundo inteiro ou uma cova rasa. Bernardo não sabia, mas preferiu arriscar. Alguns homens da cidade procuram até hoje o seu corpo, certos de que em alguma quebrada encontrarão seus restos esquecidos. Mas a cada dia sem notícias, quando os vejo voltando para casa de mãos vazias, eu aperto os olhos e imagino como deve ser este lugar onde pertencer raramente importa. Hoje, já me deixam sair de casa, mas se chove, já não molha mais.