Sunday, June 03, 2007

À margem do outro

Falávamos de tudo, mas preferíamos as bobagens. De amigos, tínhamos um ritual: sentava um à margem do outro, como se cada dia, um fosse o rio, e o humor fosse uma lua nova. E aquele que tivesse os pés molhados, ouviria as estórias do amigo, ali sentado na beirada, de cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça deitada sobre as mãos. O outro era, então, paisagem (um bocado de verdade, um bocado de mentira), mas por onde tivesse passado, o que quer que tivesse trazido, era bom de assistir, como a tarde inteira se pondo entre bitucas de cigarro e garrafas de Malbec.

Os melhores dias não tinham futuro nem glória. Porque éramos meio devassos, pelo menos era assim que queríamos ser, jovens devassos, debruçados para morrer de rir, suportando diferenças quase irremediáveis, não fôssemos tão dispostos um ao outro, exploradores das beiradas do mundo. Tudo que não precisaria ser era melhor se fosse. E os homens de ternos e atrasos, quando passavam nas calçadas de São Paulo, pareciam ainda mais tristes se vistos por nós. Do alto de nossa arrogância desgarrada, pensávamos: “nunca seremos assim, tão patéticos”.

Mas a cidade nos corrompia sem pressa. Ela era paciente. Às nossas margens, iam chegando restos imundos, frases ao pé do ouvido, notas de cem. Tudo pouco a pouco. Um dia, eu acordo, me olho no espelho e penso: “quase tudo está aqui”, e acredito piamente que, enfim, me tornei alguém; que finalmente, eu sou (eis o grande erro).O tempo ia ganhando uma noção sólida, como se fosse possível perdê-lo, como se tempo também fosse uma dessas coisas que se acha e se ganha. E daí, quase sem perceber, as línguas já esbarravam em superlativos imensos, os sentimentos ficavam prolixos demais. As coisas se sobrepunham, se emaranhavam, o mundo acontecia numa sessão privé: ele só dançava para nós, se despia para nós, enfiava seus dedos em mil buracos. Dizia: “você é”, e eu ecoava baixinho: “eu sou”.

Não sei se tivemos total consciência do processo. Por certo, não a mesma sorte das borboletas. Num instante, e nossos rios já se derramavam em cataratas violentas, podíamos tudo, e poder era como injetar heroína na veia. Nada mais era tão simples, de um simples que envergonhasse aquelas noites de gala – simples, e nos desse vontade de sonhar coisinhas pequenas, tardinhas de chuva, sessões de cinema em casa. Éramos grandes e acreditávamos firmemente que nossas opiniões tinham valor inestimável ao mundo. Na paisagem devastada, o que restavam eram fragmentos do que havíamos sido um dia, mas àquele outro avesso, àquelas velhas margens, onde se suportava o absurdo e ainda assim era possível amá-lo sem medo, não costumávamos voltar.

De amigos, nossos rituais eram novos, nada de se perder pelo mundo ou inventar a vida nos rosto de um estranho. Em nossas demonstrações públicas de saudade, escondíamos a eterna preguiça que sentíamos de nós mesmos. Ouvi-lo falar por horas era entediante - a sua voz era a minha voz. Eu reconhecia nele a monotonia dos meus próprios dilemas. E assim, e cada vez mais, evitávamos encontros, adiávamos jantares; quando era mesmo imprescindível, ensaiávamos antes em casa, na solidão gelada dos nossos apartamentos, toda felicidade possível. Era como maquiar de vida uma natureza morta. Até que de repente, e sem grande esforço, já não nos víamos tanto. E era bem melhor assim.

Não consigo, hoje, olhar para trás e apontar o dia exato, a hora em que começamos a mudar. Primeiro nublou o céu, os olhos nublaram depois, tudo num processo lento. Quando me fazia falta o poder, eu mordia os lábios, virava os olhos, aplicava uma mentira na veia - o torniquete apertando o meu braço, espelhos por todo lado. Para me acalmar, eu abria as cortinas e tentava respirar, além do mofo, a manhã. Mas lá fora não havia nada além de antenas e um futuro cheio de planos. Fracassar era um novo escrúpulo, desses que não existiam antes, mas que agora atormentava o meu sono noite após noite. Com o dedo no copo de uísque, eu dizia calma, homem, por que você tem medo? Você pode tudo. Lá embaixo, as pessoas são pequenininhas. As pessoas são como formigas. Elas andam em bandos, porque são fracas. Elas lhe obedecem e elas lhe desejam em cada fatia, como um pedaço de doce. E mesmo assim, vez ou outra, no meio do dia, sem qualquer explicação, eu chorava feito criança...

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