Monday, April 02, 2007

O aforista

Não é difícil entender: por se estar sempre só, a solidão é a certeza de cada companhia. É por isso que, cedo ou tarde, o amor sofre e sangra; o amor, que é o desespero da alma, quer leite do seio desgarrado na infância. E em vida nada será completo, nunca será. Eis o charme da noite: a morte é plena. Viveremos, então, fadados ao desassossego, acreditando que os novos amantes nos farão finalmente felizes, mas tem sempre o dia, quando a tarde cai, e estamos sós e incompletos no vício de nossos erros. A natureza encontra beleza só no que se esvai, e repete a mesma lição desde que é natureza, como se fôssemos tolos (e tolos somos demais); choramos o susto dos amores perdidos como se não soubéssemos de nada. O nosso rosto, no fim da vida, será a coleção de todos os sustos, um sobreposto ao outro. Não entendemos o crepúsculo além de suas cores bonitas.

Seria tão insuportável um dia sem fim. A eternidade é a anti-beleza das coisas, é um lugar sem angústia e sem artistas. Onde tudo é pleno, não existe vontade, ou intenção, ou movimento. É um nada tão absoluto, tão silencioso, que precisaria se estar morto para decifrá-lo. O céu é o nada. E do acaso de nos encontrarmos e acreditarmos que, enfim, estamos juntos; da delicadeza do acaso de tudo existir sem razão e sem destino, que nascem as melhores histórias. Não viemos de lugar algum e não teríamos que estar aqui por algum motivo, mas por acaso, eu te vi e você me viu, e poderíamos ter visto outros, mas nos encontramos. O bom encontro é descobrir outra solidão na esquina. Fazer da solidão, um plano de fuga e criação.

Preferimos os maus encontros, fingimos sempre, guardamos os mesmos segredos, compartilhamos dos mesmos enganos. E nos debatemos sobre nós mesmos, nos dilaceramos, somos cúmplices e inimigos. Ah, como desejamos um pai, que nos julgasse e nos punisse, e depois nos colocasse no colo e afagasse o nosso medo. Pesa sobre nós o imenso esforço da perfeição. E será inútil todo esforço, porque somos feitos de curvas, e becos, e lugares escuros, criptas de morcegos e anjos. Seria tão mais fácil se existissem as coisas simplesmente certas? Claro que não. A ironia é sermos sempre mais patéticos, quanto mais perfeitos parecermos. Os santos são entediantes, por isso viram estátuas.

De encontros furtivos, de se apaixonar milhões de vezes pelas mais diversas criaturas é que vive o poeta - sabe que o mundo inteiro caberia num único verso, e que uma só manhã preencheria um poema de mil folhas. O poeta entende a condição fundamental da existência: ele ama o torto. Quando diz: “Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o céu”, o poeta sabe que não existirão livros, nem homens, nem linhas filosóficas, nem nada que se estenda além do território de sua frase.




"Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o céu" é um aforismo de Fernando Pessoa (Bernardo Soares)

2 comments:

Nane Sato said...

legal seu blog.. vc escreve bem..

O Aforista said...

Muito bom.

http://aforista.wordpress.com