Tuesday, August 15, 2017

Metonímia

Passou rápido. Existiu em tão breve instante, que sem grande esforço não teria mais lugar. Apertou-se elegante ali entre dois fachos de vida, fez lembrar o sol que entra desavisado pelas frestas da noite. Um espasmo, lapso, aquele dia de verão que vem a deboche dos invernos resignados para lembrar que o verão ainda existe, que o verão espera lá fora. Latente, covarde.

Tudo depois foi ressaca; um tempo que se prolonga em tentar entender as coisas vivas, um respeito absoluto por todas as coisas vivas.  Como a casa depois da festa ainda é festa, como a rua depois do bloco ainda é carnaval.  Mas lembrar que naquele filete de tempo em que esteve, naquela fração invisível de tempo entre todas as coisas que existem de fato, eu olhei fundo nos olhos dele e eles eram assim da cor do abismo. A vertigem nua do amor da qual ninguém sai ileso. Nunca.  

Passou rápido. Existiu em tão breve instante, que sem grande esforço não teria mais lugar.  Mas veja como a vida é irônica: o sopro fez lembrar o furacão. No quarto de uma noite só, eu arrumo a bagunça de uma vida inteira.

Thursday, October 15, 2015

Liquid

We have a deal:
there is no more orientation,
no pattern, no name, no solid rock.
No need to fit
in some old time resignation,
no territory to keep us calm,
no home.

Since home was never a place
Home was an idea.
The oldest lie we are about to face
and reinvent ourselves.

There was never home, repeat:
there was never home.
Not there, or anywhere.

We have a deal:
love needs no more authorisation,
no law, no judge, no door to lock.
No need to achieve
any old school conciliation,
no country to fight for,
no flag to hang above us or anything.

Since there was never a name,
never a name could really fulfill us,
All that we are,
you and me.

We are so many things,
small, and big, and useless.
We are nothing to be called,
but queer.


And fluid and liquid and water.

Friday, March 27, 2015

A Última Palavra

Ao primeiro susto e o verbo morre.
A palavra cansada há tanto tempo se desfaz.
Tempo demais para querer ser de novo palavra,
querer ser todo palavra,
inteiro palavra.

Para depois, um dia, renascer em tudo o que não se diz.
Renascer sem meios de se explicar.
Nesse silêncio povoado de ouvidos,
nesse escuro que dói nos olhos
a dor das cores escondidas.

Que a última palavra seja dita!
E repetida até que seja de novo a primeira palavra.
Primeira vez que qualquer vida se faça dela,
primeiro amor, primeiro mar, primeiro tudo.
Que a última palavra seja dita.

Tuesday, August 12, 2014

À Morte


A altura da queda, 
a navalha na carne que rasga, 
o dia que rasga 
a vida. 

Reconheço o teu perfume 
e respeito em silêncio a tua liturgia. 
Oh grande senhora, 
mãe inevitável das tardes, 
ansiosa pelo agora 
ou solenemente esquecida. 
Da vida nada te escapa, 
nenhum fio de beleza suspensa, 
nenhum segundo, 
nenhum dia. 

Se os meus filhos já são teus, 
mesmo antes de existirem 
também serão teus os meus segredos 
mais envergonhados. 
Nobre senhora, 
quantas vezes me rondaste a convite meu? 
Quantas vezes foste embora?

Monday, January 27, 2014

Eu conheço o seu sono

Eu espreito o seu sono. Você nem sabe. Antes de amanhecer, antes de nós, antes de você saber que existe, eu vigio o seu sono, curioso por ele. Tudo antes da vida começar de novo, tudo de novo, amanhã e depois, você dorme e nem sabe, mas eu espreito o seu sono.

Tem uma infância guardada nele.  Tem uma guerra, um país e um precipício. E tem noites inteiras de um mar revolto, um barquinho que leva ora para o Atlântico, ora para o Pacífico. 

Eu conheço o seu sono tão bem.  Sabe-se lá porque razão, ele vem sempre antes do meu; e me esnoba, e se estende orgulhoso de seu território sobre todas as coisas vivas.  

E em nascendo em pequenos espasmos; sua mão sobre a minha avisando de que vai dormir, depois um sopro forte do pulmão, como o de uma janela deixada aberta para um mar sem fim. E você vai se ausentando de repente, vai fugindo dessa festa descarada, que já teve o seu tempo, mas não agora.  Então, você dorme e o seu sono é o dono do mundo. É o dono de qualquer lugar que seja a vontade de ser lugar nenhum.


Eu protejo o seu sono, porque é nele onde você se esconde de nós. É lá que toda mágoa se dissipa, só lá que qualquer mágoa não existe de verdade. 

E eu vigio o seu sono pela madrugada adentro. Lá, bem longe da tempestade, vive o amor em silêncio.

Monday, January 20, 2014

A Felicidade de Aurora

Aurora, nome infeliz, não era louca, não era linda, nem era das mais brilhantes criaturas, mas acontece que por desdobramento natural das coisas, para não dizer "por muita sorte", Aurora tinha uma vida dessas bastante acertadas. Um marido tão bom, mas tão bom,  que vez ou outra o chamavam de príncipe assim pelas calçadas, como aqueles dos contos de fada mesmo, porque ele era assim dessas perfeições cartunescas, de parar e pensar “eu não mereço isso”, mas Aurora não parava e não pensava essas coisas.

Aurora também tinha dois filhos, e eles eram quase sempre a exatidão de um sonho realizado. E corriam pela casa, e a casa deliciosamente arejada, com as janelas abertas e o jardim de cinema. Os livros lidos na estante eram da mais vasta e elogiada literatura, como os sorrisos dos porta-retratos dos mais sinceros sorrisos já fotografados.

Aurora não tinha, portanto, na medida em que ela mesma não merecia isso tudo, qualquer razão para que numa manhã de domingo, ela acordasse mais cedo, colocasse a primeira roupa que encontrara na frente, e saísse pelo portão de casa assim desprevenida.  Ela não precisava fugir de nada. Não tinha traído, nem mentido para ninguém. Não escondia dívidas nos bancos, nem segredos impronunciáveis. Estava limpa, como o céu estava limpo e azul naquela estrada. Mas ela foi embora.

O ônibus parou em uma cidadezinha angustiada, feia e árida, de um calor desumano. Aurora desceu suada, com o vestido molhado, o rosto vermelho e quente. Era ali que queria viver. E também queria ter outro nome agora, talvez se chamasse Paula, ou Marília. Foi direto para o hotel mais barato, que também era o hotel mais caro, posto que era o único de lá.  E por nunca dizer pelo que buscava, por nunca em anos e anos explicar de onde um dia viera, as pessoas de lá apostavam nos horrores desumanos de seu passado, nas misérias abomináveis das quais Aurora, agora Marília, ou Paula supostamente havia fugido.


Pois Paula construiu uma casinha pequena e injusta, encontrou um marido daqueles bastante reais, e varreu o chão batido e ninou as novas crianças chorosas de tanto calor. Naquela nova casa, a velha Aurora não entrou um único dia. Naquele novo lugar, nos raios do fim do mundo, Paula foi muitas vezes triste, mas era livre para assim o ser, inclusive. Ali, ninguém, absolutamente ninguém, do começo da estrada ao final da ladeira; dos meninos sem nome, às mulheres na janela, ninguém era obrigado a ser feliz.