Thursday, November 09, 2006

O Impostor

Paco lambeu os dedos como quem comeu um doce, disse: por hoje é só, subiu a calça e foi embora, sem um adeus, um aceno sequer. O apartamento ficava num prédio da Rua Avignon, no centro de Barcelona. Por dentro, até lembrava um velho casarão, com o cartaz de Blow up pregado na parede, um daqueles banheiros de azulejos verde-água, sofá com almofadas encardidas, retratos de antigos amores sobre a televisão. Não havia passado sequer quarenta minutos desde que se conheceram no banco do metrô, e a verdade é que mal trocaram seus nomes, mas à esta hora, Paco descia a escadaria do prédio sem ranço de saudade e deixava para trás um homem inerte, desolado sob um lustre de cristais azuis, uma taça de vinho tinto na mão e uma cara de reticências eternas.

Quando pisou na rua, ele assobiava uma música de Fito Paez. Na passagem estreita, estranhos passavam tão perto, que os cheiros resignados de um dia inteiro criavam coragem e o embriagavam. Ele parou para perguntar as horas, já passava das nove. Pediu fogo a uma puta das Ramblas e com o cigarro entre os dentes ainda cantou Y así tan solo así dejaste ver tu corazón. Mas a puta chorava. Para arranhar o dia, a puta, enquanto lhe acendia o cigarro, chorava e dizia: esta vida é uma merda. Paco deu um trago fundo no cigarro e se abateu numa ligeira vertigem, tirou-o da boca, pensou em dizer: Você é uma puta. Quando eu paro todo dia para te pedir fogo, eu sei que peço a uma puta. Mas se agora você chora e se recente, se agora os seus motivos são nobres, o seu filho é doente e seu país, desgraçado, eu não vejo mais uma puta quando te olho. Eu vejo uma mulher feia, gorda e desajeitada. E reconheço no que antes era talento, simplesmente fome. Mas Paco não disse nada, a Puta chorava, e ele parecia se afogar no barato do seu cigarro. Quando voltou, era como se emergisse de um lago tranquilo e silencioso, o mundo era surdo dentro dos seus olhos.

E foi assim, em passos bailados, como se existisse uma dança intermitente entre cada passo seu, que ele abandonou a mulher chorando, subiu a Rambla, virou à esquerda na Carrer de Sant Pau e não demorou até chegar ao apartamento que alugava no Raval: um quarto-sala inabitável, se ainda coubesse paradoxos além de roupas sujas sobre o sofá. Paco entrou no apartamento, fez um cafuné no gato, deixou apenas a luz de um abajur acesa no canto da sala e imediatamente ligou o computador, seguindo a rotina de toda noite insone. Porque tudo o que ele queria era tanto e todos, uma coleção de gente, que toda noite, Paco se debruçava no teclado como um menino se debruça na janela para ver o céu. E passava horas, alto, baixo, rico, pobre, costas largas, esportista, intelectual. Daí marcava encontros com estranhos na mesa de um café do centro, sempre no outro dia às quatro da tarde, para chegar com meia hora de antecedência e assistir ao espetáculo que se anunciava e se repetia há séculos.

Aquela mulher deveria ser Sara. Ontem à noite, ela fez questão de ressaltar seus 1,55 de altura, porque não queria que Paco se desapontasse com sua mirrada figura. Chegou cinco minutos atrasada ao café, sentou-se no lugar exato onde ele determinara: “a segunda mesa da esquerda, mais próxima do canteiro de flores”. Ela trouxe o que pôde consigo: o rosto agridoce da professora universitária, armação vermelha de óculos redondos, um spray para alentar o hálito, um livro de Foucault. Parecia ansiosa ao chegar, suada nas axilas. Certificou-se mais uma vez o hálito, desprendeu e prendeu o cabelo algumas vezes, e em movimentos repetidos, como o de bater os dedos sobre a mesa, ou desfiar a costura da toalha, ela passaria a próxima hora e meia esperando. Porque Paco não viria nunca. Porque Paco já estava ali, sentado no banco da praça, observando de longe o que fazia nascer, aflorar, para viver tão breve instante e depois morrer ofegante à margem de olhos tão tristes. Sempre assim, a mesma espera cruel definhando os traços dos estranhos, apagando os ensaios do outro dia. A mais terrível solidão era aquela, porque se revelava a cada minuto maior, crescendo feito metástase das sombras, trepando nas árvores, tudo grande, sem um grito.

E Paco não fazia por mal, mas costumava assistir às esquetes de solidão vespertina: cada estranho encenando a mesma cena a cada dia, à mesma hora. Ele era a sala cheia de um teatro antigo; era o público afoito pelas variações do nada, freqüências cansadas das mesmas ondas. Porque existiam diferentes razões no desespero, um homem peludo e careca não é uma senhora com saia de flores. Os enredos, os atos e as músicas variavam, mas ali, às quatro e meia da tarde, o ridículo e o mais belo era estar sempre só. Como se Paco desnudasse cada alma e, desnudas e envergonhadas, elas procurassem os maiores buracos que pudessem tapar. Mas os pudores da alma são sempre grandes demais para se cobrir com as mãos.

Às cinco e meia da tarde, a cortina se fechava. Paco deixava o banco da praça e dava uma volta pela cidade, vasculhando as ruas sujas, perseguindo estranhos de sexo fácil. Mas naquele dia, contrariando a rotina,depois de uma hora e meia, Sara abriu um sorriso. Um homem de chapéu, que acabara de atravessar a rua, se aproximou de sua mesa. Os dois se abraçaram. Ele sentou-se, pediu um chá e acendeu um charuto. Paco estava assombrado: se aquela não era a mulher, se a espera não era por ele, onde estaria? Ele rastreou com olhos atentos cada centímetro do café. Em anos, nunca havia acontecido, onde estaria a mulher com quem passara a noite debruçado em mentiras no teclado? Ela não estava ali, além do casal que agora conversava, não existia mais ninguém. Transeuntes falavam alto, as pombas habitavam a praça, os telhados, os delírios; crianças se desgarravam dos pais e corriam para fazer nuvens de pombas no ar. Era todo um pesadelo.

A poucos metros da praça, escondida detrás de uma árvore, uma menina cabelos cor de Merlot, olhos azuis, sapatinhos vermelhos de Dorothy, assistia ao improvável. E não importavam as razões que Paco tivesse, solto entre estranhos, completamente abandonado, era ele quem estava nu em palco aberto, e por hora e meia, a tarde se esforçara para compreender a sua mais secreta obscenidade. A menina tirou da boca o chiclete que mascava, pregou-o na árvore, como se marcasse um ponto na eternidade - tão infantil era o seu deleite que se via transbordar na superfície dos olhos. Era como se proferisse um feitiço, porque repetia mil vezes o mesmo verso. Foi embora dizendo:

“Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge. Mas finge sem fingimento. Nada esperas que em ti já não exista. Cada um consigo é triste. Tens sol se há sol, ramos se ramos busca. Sorte se a sorte é dada.”*



* “Estás só. Ninguém o sabe.” Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

1 comment:

Anonymous said...

Excelente,

Parabéns!