Monday, April 03, 2006

Na cor das coisas

Para Xavier Arola


Eu amava esta rua, eu me sentava no chão sujo deste bulevar, quando voltava para casa, depois de acordar chapado na casa de algum estranho. Eu cantava qualquer coisa que me viesse à cabeça, eu era feliz, triste, extremamente instável. Vez ou outra, eu parava nesta esquina para parir uma idéia, ela me doía como num parto. Eu passava a mão no meu rosto, eu tomava conta de mim. Eu pegava o 39 para Barceloneta, eu deitava na areia da praia e lia Camus ou Caio Fernando Abreu, e eu sentia saudade de casa toda vez que tocavam bossa-nova em algum boteco do Born. Eu dizia que o Brasil não era só futebol e carnaval, porque eu sabia que o Brasil era, no fundo, um monte de gente sambando e jogando bola.

Eu bebia sempre do copo de estranhos, eu provava tudo que me ofereciam, eu viajava alto, depois descia fundo no abismo dos próximos dias. Eu fazia sexo, nunca fazia amor. Eu lastimava a letargia da esquerda, eu desejava ser um jovem na greve de Paris, eu tinha raiva e medo da polícia, eu andava sem passaporte para que não soubessem que eu era ilegal. Eu ligava para o Brasil às duas da manhã, eu dizia para a minha mãe que estava tudo bem, quando realmente estava. Eu me apaixonava eternamente por pessoas e coisas, tinha conversas vagas, estúpidas, tardes enormes de domingo. Quando me abandonavam, eu formulava planos de vingança, quando não me abandonavam, eu as esquecia poucas semanas depois.

Eu dormia em fábricas sujas e abandonadas, frequentava festas e segredos nos hotéis granfinos da cidade, mas gostava mesmo era de sentar num café no fim da tarde, para ver as pessoas passando e vivendo a vida fácil de uma cidade mansa. Eu tinha amigos milionários que pagavam a conta, eu tinha amigos quase sem um duro, que também pagavam a conta. Eu falava mais inglês, que espanhol e morava num apartamento com três gringos do norte da Europa. O lugar era sempre uma zona, cheio de copos, cinzeiros, roupas sujas, e algum viajante no sofá da sala, mas eu teimava em chamar de lar. Eu conhecia gente de passagem, gente para nunca mais. Eu voltava às quatro da manhã, caminhando pela Gran Via, e vivia o clichê do brasileiro classe-média impressionado pela tranquilidade urbana - ninguém me roubava, ninguém tentava me matar.

Eu citava livros infantis para explicar linhas filosóficas, eu ouvia Belle and Sebastian para entrar ou sair de uma fossa. Eu não tinha dinheiro para comprar um ipod. O cheiro de urina quente me embriagava nos becos escuros do Raval, eu admirava a beleza torta dos cortiços de luxo, os artistas sem arte, as roupas secando na janela. Eu prometia uma vida saudável para semana seguinte, prometia ficar sóbrio o máximo de tempo possível, eu malhava e corria na esteira da academia, fazia meu muque na frente do espelho. Eu era forte, fraco, patético, mas acreditava que alguns cortes de cabelo deveriam ser tombados como patrimônios históricos da humanidade.

Quando me engajava nos direitos humanos, eu dizia que a Europa mantinha uma relação covarde e ambígua com os países pobres, daí, freqüentava as semanas de palestras do Centro Cultural e fazia o bom uso dos corredores, dos bancos dos carros, das sacadas dos apartamentos, da amnésia providencial do dia seguinte. Eu tinha os mais adoráveis amigos. Toda noite era pão com tomate e vinho tinto, e eu não me arrependia de quase nada. Se por acaso, eu estivesse extremamente melancólico, eu caminhava pela cidade sem rumo, falava sozinho como um louco e escrevia um relato no meu blog.

Eu não fazia idéia do tempo, eu mergulhava nos olhos dos outros. Eu arriscava cada centímetro da minha lucidez. Eu era amoral, breve como um gole de champanhe. Eu andava completamente apaixonado pelas cidades perdidas em mim. E nunca me preocupava com epitáfios, nem cartas de despedida.

. . .

Agora são nove e vinte da manhã. Estou sentado no banco de uma praça. O presente é um céu azul que não sangra, nem cicatriza. Uma mulher me olha com piedade, ela tem pressa, passa correndo. O relógio existe agora, o relógio existe em tudo. Um senhor acende um cachimbo, o ônibus passa cheio, eu sinto o chão tremer com o metrô sob os meus pés. Eu lembro de que vou embora, em dez dias eu subo num avião e parto daqui. Das hipóteses prováveis, nenhuma me agrada ou me dá medo: se o avião cair no Atlântico, eu terei morrido aos 24 anos, oito meses e vinte dias; se o avião pousar em São Paulo, eu terei provado que o tempo se torce como parafuso, gira sobre si mesmo, mas não se repete exatamente. Mas o presente engole cada instante e suas hipóteses. O presente é indiferente aos outros tempos, porque só ele existe de fato. O passado é o grande capricho da memória, o futuro é um menino pidão. Na sua mais profunda solidão, o presente vibra na cor das coisas, o presente faz tic tac.

4 comments:

Anonymous said...

Lindo, sutil, misturando a realidade com os seus "devaneios" num ritmo leve! como sempre! hehe.. vc chega qdo? vem pra goiania ou pára em SP mesmo? beijoss

Anonymous said...

pergunta boba, mas vc já viu O Albergue Espanhol?
Vi na semana passada e não conseguia parar de pensar em vc, em mim, na vida...
Parabens pelo texto, calou fundo por aqui ehehe
Boa viagem de volta e um conselho... se bem que nao vai adiantar de nada...
RESPIRA FUNDO....
Beijão, grandes saudades, espero poder tomarmos varios vinhos e falar sobre as coisas...
Andre.

Anonymous said...

o presente é tão imediato,
o futuro promessa,
o passado lembrança.
A vida em cada inspiração,
no coração o pulso,
no amor o fluxo,
no retorno o encontro.

Abraço

dealiette@zip.net
http://spaces.msn.com/dealiette

Anonymous said...

que lindo...quase chorei...e nem te conheço...mas senti teu cheiro...
e gostei do que senti...